ACREDITAR OU NÃO ACREDITAR NA RELIGIÃO CRISTÃ[1]
Em
“Os Pensamentos”, Blaise Pascal fez sua defesa da religião cristã, destinada a
tocar os libertinos (pessoas que negam toda religião revelada, a qual se deve
demonstrar) e os céticos (que colocam tudo em dúvida). Segundo Pascal, o homem
é um ser miserável, um “nada do ponto de vista do infinito universo, um tudo do
ponto de vista do nada, isto é, um meio-termo entre o nada e o tudo”. Ele é
incapaz de atingir a verdade, pois a razão humana é constantemente enganada
pela imaginação ou outras “potências enganadoras”. Sua única esperança é Deus:
ele tem tudo a ganhar apostando na existência Dele. É o famoso argumento da
aposta.[2]
Nossa
alma está lançada no corpo, no qual acha número, tempo, dimensões. Raciocina
sobre isso e lhe dá o nome de natureza, necessidade, sem poder acreditar em
outra coisa. A unidade agregada ao infinito em nada o aumenta, do mesmo modo
que um pé a uma medida infinita. O finito se aniquila em presença do infinito e
se torna um simples zero. Assim o nosso espírito diante de Deus; assim a nossa
justiça diante da justiça divina.
Não
há tão grande desproporção entre a nossa justiça e a de Deus como entre a unidade
e o infinito.[3] É preciso que a justiça de
Deus seja enorme como a sua misericórdia: ora, a justiça para com os réprobos é
menos enorme e deve aliviar menos do que a misericórdia para com os eleitos.
Sabemos
que há um infinito e ignoramos a sua natureza, assim como sabemos que é falso
que os números sejam finitos; é, pois, verdade que há um infinito em número,
mas não sabemos o que ele é. É falso que seja par, é falso que seja ímpar;
porque, acrescentando-lhe a unidade, ele não muda de natureza: no entanto, é um
número, e todo número é par ou é ímpar; isso é verdadeiro para todos os números
finitos.
Pode-se,
pois, saber que existe um Deus sem saber o que ele é.Conhecemos, pois, a existência
e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele. Conhecemos a
existência do infinito e ignoramos sua natureza, porque ele tem extensão como
nós, mas não tem limites como nós. Não conhecemos, porém, nem a existência nem
a natureza de Deus, porque ele não tem extensão nem limites. Mas, pela fé,
conhecemos sua existência; pela glória, conheceremos sua natureza. Ora, já
mostrei que não se pode conhecer bem a existência de uma coisa sem conhecer a
sua natureza.
Falemos,
agora, segundo as luzes naturais.
Se
há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, uma vez que, não tendo nem
partes nem limites, nenhuma relação possui conosco: somos, pois, incapazes de
conhecer não só o que ele é, como também se ele é. Assim sendo, quem ousará
empreender resolver essa questão? Não somos nós, que nenhuma relação temos com
ele.
Quem,
pois, censurará os cristãos por não poderem dar satisfação de sua crença, eles
que professam uma religião de que não podem dar satisfação? Expondo-a ao mundo,
eles declaram que isso é uma tolice, stultitiam. No entanto, vós vos lastimais
porque eles não a provam! Se a provassem, faltariam à sua palavra; é por não
terem provas que não lhes falta o senso. Sim; mas, embora isso escuse os que
assim a oferecem e os livre da censura de produzi-la sem razão, não escusa os
que a recebem.
Examinemos,
pois, esse ponto, e digamos: Deus é, ou não é. Mas, para que lado penderemos? A
razão nada pode determinar ai. Há um caos infinito que nos separa. Na
extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Que apostareis?
Pela razão, não podeis fazer nem uma nem outra coisa; pela razão, não podeis
defender nem uma nem outra coisa.Não
acuseis, pois, de falsidade os que fizeram uma escolha, pois nada sabeis disso.
"Não: mas, eu os acusarei de terem feito, não essa escolha, mas uma
escolha; porque, embora o que prefere coroa e o outro estejam igualmente em
falta, ambos estão em falta: o justo é não apostar".
Sim,
mas é preciso apostar: isso não é voluntário; sois obrigados a isso; (e apostar
que Deus é, é apostar que ele não é). Que tomareis, pois? Vejamos, já que é
preciso escolher, vejamos o que menos vos interessa: tendes duas coisas que
perder, o verdadeiro e o bem, e duas coisas que empenhar, vossa razão e vossa
vontade, vosso conhecimento e vossa beatitude; e vossa natureza tem duas coisas
que evitar, o erro e a miséria. Vossa razão não é mais atingida, desde que é
preciso necessariamente escolher, escolhendo um dentre os dois. Eis um ponto
liquidado; mas, vossa beatitude?
Pesemos
o ganho e a perda, preferindo coroa, que é Deus. Estimemos as duas hipóteses:
se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis. Apostai, pois, que
ele é, sem hesitar. Isso é admirável: sim, é preciso apostar, mas, talvez eu
aposte demais.Vejamos. Uma vez que é tal a incerteza do ganho e da perda, se só
tivésseis que apostar duas vidas por uma, ainda poderíeis apostar. Mas, se
devessem ser ganhas três, seria preciso jogar (desde que tendes necessidade de
jogar) e seríeis imprudente quando, forçado a jogar, não arriscásseis vossa
vida para ganhar três num jogo em que é tamanha a incerteza da perda e do
ganho. Há, porém, uma eternidade de vida e de felicidade; e, assim sendo,
quando houvesse uma infinidade de probabilidades, das quais somente uma fosse
por vós, ainda teríeis razão em apostar um para ter dois, e agiríeis mal,
quando obrigado a jogar, se recusásseis jogar uma vida contra três num jogo em
que, numa infinidade de probabilidades, há uma por vós, havendo uma infinidade
de vida infinitamente feliz que ganhar. Mas, há aqui uma infinidade de vida
infinitamente feliz que ganhar, uma probabilidade de ganho contra uma porção
finita de probabilidades de perda, e o que jogais é finito. Jogo é jogo: sempre
onde há o infinito e onde não há infinidade de probabilidades de perda contra a
de ganho, não há que hesitar, é preciso dar tudo; e, assim, quando se é forçado
a jogar, é preciso renunciar à razão, para conservar a vida e não arriscá-la
pelo ganho infinito tão prestes a chegar quanto a perda do nada.
Por
conseguinte, de nada serve dizer que é incerto ganhar-se e que é certo
arriscar-se, e que a infinita distância entre a certeza do que se expõe e a
incerteza do que se deve ganhar iguala o bem finito, que certamente se expõe,
ao infinito incerto. Não é assim: todo jogador arrisca com certeza para ganhar
incertamente o finito, sem pecar contra a razão. Não há infinidade de distância
entre essa certeza do que se expõe e a incerteza do ganho; isso é falso. Há, na
verdade, infinidade entre a certeza de ganhar e a certeza de perder. Mas, a
incerteza de ganhar é proporcional à certeza do que se arrisca, segundo a
proporção das probabilidades de ganho e de perda; de onde se conclui que,
havendo tantas probabilidades de um lado como do outro, a aposta deve ser igual;
e, então, a certeza do que se expõe é igual à incerteza do ganho; bem longe
está de ser infinitamente distante. E, assim, a nossa proposição é de uma força
infinita, quando há o finito que arriscar num jogo em que há tantas
probabilidades de ganho como de perda, e o infinito que ganhar. Isso é
demonstrativo; e, se os homens são capazes de algumas verdades, essa é uma
delas.
Eu
o declaro e o confesso. Mas, não haverá ainda um meio de ver o segredo do jogo?
Sim,
a Escritura, e o resto, etc.
Sim;
mas, tenho as mãos atadas e a boca muda; forçam-me a apostar, e não estou em
liberdade; não me soltam, e sou feito de tal maneira que não posso crer. Que
quereis, pois, que eu faça?
É
verdade. Mas, conhecei ao menos a vossa impotência para crer, já que a razão a
isso vos conduz, e que todavia não o podeis; trabalhai, pois, não para vos
convencerdes pelo aumento das provas de Deus, mas pela diminuição das vossas
paixões. Quereis chegar à fé, mas ignorais o caminho; quereis curar-vos da
infidelidade, mas pedis os remédios: aprendei com os que estiveram atados como
vós e que apostam agora todo o seu bem; são pessoas que se curaram do mal de
que desejais curar-vos. Segui a maneira pela qual começaram: fazendo como se
acreditassem, tomando água benta, mandando dizer missas, etc. Naturalmente,
isso vos fará crer e vos embrutecerá.[4]
Mas,
é o que receio. E porquê? que tendes que perder?
PASCAL, Blaise.
Pensamentos. versão para eBook (ebooksBrasil.org) - Ridendo Castigat Mores (org), 2002.
[1] Esse artigo tem, na edição de 1779,
este titulo: COMO É DIFÍCIL DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE DEUS PELAS LUZES
NATURAIS, MAS COMO O MAIS SEGURO É CRER NELA; e, no volume de Cousin e na
edição de Faugère, o seguinte: INFINITO, NADA. O título da presente edição é o
da de 1670.
[2] Este argumento tem o
formato que se segue: se você acredita em Deus e estiver certo, você terá um
ganho infinito; se você acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda
finita; se você não acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho
finito; se você não acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda
infinita.
[3] Ou, segundo a edição de Port-Royal:
"Não há tão grande desproporção entre a unidade e o infinito como entre a
nossa justiça e a de Deus."
[4] "Dissera Montaigne antes de Pascal:
"Precisamos embrutecer para tornarmo-nos sábios." E São Paulo: Nemo
se seducat: si quis videtur inter vos sapiens esse in hoc sceculo, stultus fiat
ut sit sapiens; sapientia enim hujus mundi stultitia est apud Deum. (Epist. ad
Corinth., III, 19).
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