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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A COMPREENSÃO DO HOMEM - BLAISE PASCAL


Pascal empenha-se no estudo do homem antes e depois do pecado original “http://blaisepascalogenio.blogspot.com.br/2013/10/a-natureza-do-homem-antes-e-depois-do.html” para depois analisar as outras dimensões paradoxais da condição humana. Esse estudo, pode ser definido como o resgate da dignidade do homem. Ele define o homem como sendo o centro do universo, e pólo centralizador de todo o criado, é a expressão máxima e mais sublime de todo o orbe. Figura central do mundo criado, nada mais natural que esse fato ressalte por si só a grandeza e a dignidade do ser humano, porém à grandeza do homem se contrapõe a miséria da condição humana. Toda a dignidade e a grandeza do homem consistem no pensamento, ou seja, na razão, contudo, a condição humana é miserável, A grandeza do homem é grande na medida em que ele  se conhece miserável”, afirma o filósofo. “Uma árvore não  sabe que é miserável. É, pois, ser miserável conhecer-se  miserável; mas é ser grande saber que se é miserável” Blaise Pascal, in 'Pensamentos’. Essa miséria humana transparece continuamente na vida de qualquer um.  

Para Pascal o homem situa-se entre duas realidades infinitas: o macro e o microcosmo. Sendo o primeiro o universo invisível na totalidade por sua grandeza e o segundo a natureza também infinita nas suas divisões intermináveis. Pascal nos coloca diante da angústia da nossa finitude em meio a estas realidades, pois “é inútil dilatar nossas”  concepções além dos espaços imagináveis” (PASCAL, 1995, p. 142). Seu objetivo é perceber o real valor do homem, da terra e do artifício por ele produzido. Assim: “Que o homem, tendo voltado a si, considere o que é em relação ao que existe; que se considere perdido nesse cantão desviado da natureza; e que, desse pequeno cárcere em que se acha instalado, e  entendo o universo, aprenda a estimar a terra, os reinos, as cidades e a si mesmo segundo o seu justo valor (PASCAL, 1995, p. 142).

Pascal direciona o estudo do homem pela necessidade de comunicação, que não é apenas com os outros, mas também consigo mesmo, isto é, clareza e sinceridade consigo próprio. “O homem é visivelmente feito para pensar. Aí reside toda a sua dignidade e todo o seu mérito, e todo o seu dever é pensar com acerto. Porque a ordem do seu pensamento é começar por si, pelo seu autor e pelo seu fim.
Ora em que pensa o mundo? Nunca nessas coisas; mas em dançar, em tocar alaúde, em cantar, em fazer versos, em jogar ao anel, etc., em combater, em chegar a rei, sem pensar no que é ser rei e no que é ser homem
Blaise Pascal, in 'Pensamentos’. Ou seja, o homem devia começar a pensar em si próprio, mas tal não acontece e procura-se de preferência a ciência das coisas exteriores. Por isso, o homem deve empenhar-se e conhecer-se a si mesmo a partir das suas insuficiências, como um ser historicamente dividido, extraviado e esquartejado entre duas naturezas antagónicas, no qual não é possível existir comunicação entre as três ordens “carne, espírito e vontade”.

O homem deve começar por si, a sua tarefa essencial e primeira é a de conhecer-se a si mesmo. Mas para tal a razão não lhe serve de nada. Como guia do homem, a razão é débil, inútil e incerta. Ela submete-se facilmente à imaginação, ao costume e ao sentimento, que impelem o homem para extremos opostos, e a razão que devia instituir regras é flexível e incapaz de instruí-la. Outra via de acesso à realidade humana é o coração. O coração, diz Pascal, “tem razões que a razão desconhece: percebe-se isso em mil coisas...Blaise Pascal, in 'Pensamentos’. Entender e fazer valer as razões do coração é a tarefa do espírito de finura. O antagonismo entre coração e razão, entre o conhecimento demonstrativo e a compreensão instintiva é expresso por Pascal como um antagonismo entre o espírito de geometria e o espírito de finura. No princípio de geometria, os princípios não são palpáveis, alheios ao uso comum, e difíceis de ver, mas, uma vez vistos, é impossível que nos fujam. No espírito de finura, os princípios estão no uso comum, perante os olhos de todos “A diferença entre o espírito de geometria e o espírito de finura, num os princípios são palpáveis, mas afastado do uso comum; (...) no outro os princípios são de uso comum aos olhos do mundo”... Blaise Pascal, in 'Pensamentos’.

 As coisas relativas à finura sentem-se mais do que se vêem, requer um esforço imenso para fazê-las sentir aos que não sentem por si e não se podem demonstrar completamente porque não se conhecem os seus princípios como se conhecem os da geometria. O espírito de finura vê o objeto de um só golpe de vista e não através do raciocínio. A diferença é que o primeiro raciocina e o segundo compreende. A eloquência, a moral, a filosofia fundam-se no espírito de finura, isto é, na compreensão do homem, e quando dele prescindem tornam-se incapazes de atingir os seus objetivos. O homem não pode conhecer-se como objeto geométrico, não pode comunicar consigo mesmo e com os outros mediante uma cadeia de raciocínios.

A maior baixeza do homem é a procura da glória, por mais posses que tenha na terra, por mais saúde e comodidade que possua não se sente satisfeito se não conta com a estima dos homens. Ele considera a razão do homem tão grande que, por maior vantagem que tenha na terra, não se considera satisfeito se não estiver também vantajosamente colocado na razão humana. É o mais belo lugar do mundo, e nada pode desviar o homem desses desejos. É essa a qualidade mais indelével do coração humano. Os que mais desprezam os homens igualando-os aos animais, ainda querem ser admitidos e acreditados, por isso contradizem por seu próprio sentimento, a sua natureza é mais forte do que tudo os convence de grandeza do homem mais fortemente do que a razão os convence da sua baixeza.

Acredita-se que, a partir desse projeto antropológico, Pascal pensou todos os fundamentos da natureza humana, e desenvolveu as suas reflexões tornando possível uma leitura objetiva da sua posição quanto à condição do homem. Não se trata de um estudo que leva o homem voltar-se para si soberbo, nem de uma rejeição de todas as suas qualidades, mas sim de um processo de renúncia de toda e qualquer forma de concupiscência. Trata-se de um voltar-se sério e objetivo para a sua condição de finitude e da aceitação desta situação, para procurar a verdade. Caso queiramos compreender em que consiste o conhecimento e a reflexão sobre “o homem”, onde a tarefa primordial é o “conhecer a si mesmo”, é na grandeza que o homem se reconhece como mísero; é mísero quando não consegue se livrar-se das amarras que o prendem, fruto da decadência humana, e a necessidade de comunicação consigo mesmo, em detrimento da procura das coisas exteriores.
A conclusão que se pode chegar, é que o estudo do homem em Pascal passa necessariamente pelo estudo e a interpretação dos dois estados “antes e depois do pecado”; como guia inicial, e força motriz para alargar a pesquisa para outros domínios da condição humana. A postura de Pascal é definida por muitos, como sendo “anti-humanista”, uma vez que, para ele, o humanismo significa esquecer o Divino, isto é, de certa forma, a mesma atitude que Adão teve ao virar as costas para Deus, e afirmar a sua própria suficiência como criatura. Nesse caso, entende-se a concupiscência como o abandono de Deus. Por isso, para sermos capazes de desejar de modo reto, precisamos pedir ajuda a Deus.

A dupla natureza do homem não se dissolve e é difícil de conceber, o homem continua na tentativa de tudo abraçar ou ao menos estar seguro em alguma certeza. O homem após a queda ainda detém uma vontade insaciável e justamente ela pode conduzi-lo tanto para a concupiscência, sua pior indigência, como para Deus, que pode proporcionalmente saciá-la por ser também infinito. Direcionar esta vontade para bem pensar se constitui o grande desafio humano, pois a alma tende naturalmente a primeira opção. No entanto o pensamento não pode estabelecer relação com o mistério, só quando o homem recebe não apenas o que não pode compreender, mas aceita a sua incoerência pode encontrar o Absoluto, ou seja, Deus.

O homem possui dois tipos de grandeza: as naturais e as de posição. As grandezas naturais são as que não dependem do capricho dos homens, porque consistem em qualidades reais e efetivas da alma ou do corpo, que tornam mais estimável (como ocorre com as ciências) a luz da inteligência, a virtude, a saúde, a força. As grandezas de posição dependem da vontade dos homens, que acreditaram com razão dever honrar certas condições sociais e atribuir-lhes certa respeitabilidade. Infelizmente, como Pascal percebeu desde sua época e muito mais se vê hoje, o valor do homem se reproduz na aparência, nas imagens reproduzidas e criadas por ele e que regem as relações, mas que não o retratam intrinsecamente.

Arlindo Rocha
Graduado em Filosofia pela Universidade Pública de Cabo verde.

Bibliografia:
PASCAL “Cientista e Filósofo Místico” - Coleção Filosofia Comentada – Editor Lafonte, 2011.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Os Pensadores. Trad. de S. Milliet. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Meditações sobre Pascal - Luís Felipe Pondé


(...) Ao contrário do que se propaga o senso comum, que distingue Pascal como um cientista que larga a razão para se dedicar à religião, a espiritualidade sempre esteve presente na vida de Pascal. Mas dói a partir de sua conversão ao jansenismo que a religião se tornou ainda mais evidente em sua obra.
O contato mais intenso de Pascal com a religião se dá por influência de sua irmã, que se tornara freira na abadia de Port-Royal. Além disso, algun fatos marcaram definitivamente o direcionamento espiritual na vida de Pascal, como a morte de seu pai e a “milagrosa” cura de sua sobrinha, que sofria de uma fístula lacrimal maligna. Essa recuperação ocorreu quando ela, desenganada pelos médicos, tocou o Santo Espinho que existia em Port-Royal. Entretanto, essa fase da vida de Pascal é rica em especulações. Para alguns, a sua conversação aconteceu quando escapou ileso de um acidente com uma charrete; para outros, o cientista abraçou a vocação religiosa após ter visões.
O fato é que a partir daí, em 1653, Pascal abandona seus trabalhos e estudos matemáticos para se voltar à teologia. Nesse período, seus textos apologéticos se direcionam para críticas aos jesuítas e a Descartes. Pascal achava que os jesuítas reduziam a religião a ritos e dogmas, sem se preocuparem com a reflexão metafísica. Estes escritos estão em Cartas Provinciais, um conjunto de dezoito cartas em defesa do jansenismo. Sobre Descartes, registrou: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus”.
Para discutir a questão da influência do jansenismo na obra de Pascal e de como seu trabalho se opôs e se opõe ao pensamento cartesiano, a CULT conversou com Luís Felipe Pondé, filósofo e professor do Programa de Estudos Pós-graduados e Ciência da Religião da PUC-SP e de comunicação da Faap. Ele é o autor de O Homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana (2001), Conhecimento na Desgraça: ensaio de epistemologia pascaliana (2004), ambos pela Edusp, e de Crítica e Profecia: Filosofia da religião em Dostoievski (2003), pela Editora 34.

CULT – De que maneira a religião está presente na obra de Pascal antes de sua aproximação do pensamento jansenista?
Luís Felipe Pondé – É difícil falar em obra antes da aproximação com o jansenismo, porque mesmo em momentos iniciais, como sua perseguição ao clérigo Saint Ange (Jacques Forton, senhor de Saint-Ange-Montcard, com quem Pascal teve suas primeiras discussões teológicas), já há uma tendência agostiniana; se o jansenismo venceu em parte da comunidade intelectual cristã francesa do século 17, é porque já havia – inclusive por conta da sensibilidade calvinista forte na França, e o jansenismo é muito próximo do calvinismo em termos de espiritualidade – uma predisposição espiritual para tal. O Pascal importante é já jansenista, mesmo que o cientista e matemático já “brincasse” há muito tempo.

CULT – Talvez alguns dos conceitos mais “populares” de Pascal sejam os matemáticos. O senhor acha que esse lado do trabalho dele seja menor de o compararmos com sua herança para a filosofia?
L.F.P – Quero dizer que ele era tão bom em matemática que mesmo criança brincava com isso e assustava seu pai e seus amigos matemáticos e filósofos. De modo algum o Pascal matemático é menor, ele é fundamental em probabilidades, nas bases do cálculo infinitesimal, matrizes, geometria etc. Outra coisa: para ele isso era “brincadeira” porque tudo era divertissement (divertimento) para ele, mesmo a filosofia ou qualquer atividade intelectual. Lembre-se, segunda concupiscência, Agostinho, curiosidade vã do intelecto. Conta-se que quando ainda era criança seu pai o pegou deduzindo tudo o que se sabia da geometria euclidiana, e que ficou e, pânico com medo que o menino pirasse e proibiu seus amigos de falarem com ele para não piorar sua situação mental.

CULT – Como foi possível a ele promover uma conciliação entre sua obra antes e depois de sua conversão ao jansenismo?
 L.F.P – Sua obra “posterior”, ou sua obra tout court, é um desdobramento que põe em diálogo a sensibilidade teológica jansenista com sua cultura filosófica e de ciências naturais e matemáticas; não acho um problema essa “conciliação”, porque não é a rigor uma “conciliação”, mas uma efetivação de uma obra que encontra na espiritualidade jansenista um campo para a crítica ao humanismo antropocêntrico. Quando ele escreve, ele já escreve como jansenista.

CULT – Como essas mudanças na vida e na obra de Pascal foram vistas por cientistas de seu tempo?
L.F.P – Muitos cientistas a sua volta partilhavam de atitudes religiosas semelhantes ou contrárias, mas ainda assim dentro do escopo religioso. É importante lembrar que controvérsias teológicas eram dadas dentro de ambientes filosóficos e científicos, muitos eram padres e não leigos como Pascal – na obra dele mesmo temos cartas e padres cientistas; o foco maior de disputa era a base teológica. Pascal era um cientista de sucesso em sua época, com sua pouca idade. Contudo, e isso é uma questão complexa para pouco tempo e espaço, é que sua teoria da ciência – ou sua epistemologia – é bastante avançada para sua época e aí está parte de sua crítica à lógica, geometria e físicas de cepa “fundacionalistas” ou essencialista de viés cartesiano. Sua lógica é muito mais formal e bem menos conteúdista, e muito mais de nomes do que de entes; a raiz disso é sua teologia agostiniana da insuficiência do homem em fazer algo além do que conhecimento local. Também entra aí sua crítica à linguagem, que é muito próximo às críticas neopragmáticas e wittgensteinianas. Mas no caso de Pascal, toda essa inconsistência cognitiva é fruto da desgraça teológica; sua ciência está dentro de sua teologia.

CULT – A questão da religião em Pascal o tornou uma espécie de “caso” na história da filosofia, por oposição a Descartes?
L.F.P – Não, Pascal não é quem é porque se opôs a Descartes. Inclusive para ele, este era “incerto e inútil”. A idéia nietzschiana de que Pascal era um grande moralista ( no sentido de um anatomista da alma e da moral), mas infelizmente atormentado pela religião, é típica dos reducionismos errados de Nietzsche e de autores similares ao que poderíamos chamar de um intelecto religioso como o do Pascal. A religião em Pascal é o centro de sua preocupação, e daí que parte sua antropologia, sua moral, sua política e sua espistemologia. Sua oposição teológica é ao humanismo de cepa renascentista do tipo “Pico de La Mirândola”. Descartes representa pouco nesse cenário. Para Pascal, Descartes era apenas um filósofo-cientista, que não sabia ao certo qual era o problema do ser humano, alguém que se divertia com objetos pouco produtivos em termos de salvação humana, leia-se, em termos de um aumento da consciência filosófica da condição humana. Pascal é uma ancestral do existencialismo e do pensamento da angústia. Para ele, Descartes era um ilustre e inteligente equivocado.

CULT – Foi ele o primeiro crítico da razão?
L.F.P – O termos “razão” é variável na história da filosofia. Pascal não é o primeiro crítico da “razão”, mas é o primeiro no período mais próximo a Descartes e, por ser matemático e cientista prático, sua crítica pesa muito.

CULT – O pensamento de Pascal consegue manter um diálogo com as questões contemporâneas?
 L.F.P – Sim, muitas, não dá para falar delas aqui, mas seguramente com a lógica formal e axiomática, com o neopragmatismo, com o ceticismo, com descrença no ser humano, com o ceticismo político – críticas da democracia -, com a psicologia profunda de cepa freudiana – seu pessimismo com relação à estrutura psíquica humana e não à coisa sexual -, com crítica ao hedonismo materialista, à cultura da auto-estima – essa coisa brega que está virando objeto da academia – etc.

CULT – O senhor considera que a obra de Pascal é devidamente reconhecida nos dias de hoje?
L.F.P – Ela está em processo de reconhecimento. É uma obra difícil e pouco trabalhada no Brasil. Sua teologia dura e “anti-humanista”, pouco simpática ao humanismo hedonista de nossa época, tende a assustar as pessoas. Todavia, qualquer pessoa que gosta de pensar a condição humana a sério em Pascal tende a trabalhá-lo.

CULT – E em outros países, como é esse cenário?
L.F.P – Na França, evidentemente, é muito trabalhado. Fora de lá, Inglaterra um tanto. No Japão, há um scholar pascaliano. Não há nenhum trabalho que eu conheça importante publicado sobre Pascal fora da França. Seu pessimismo antropológico é que afasta muita gente dele e não sua matemática.
Fonte:  CURI, Fabiano(jornalista). Meditações. REVISTA CULT. n° 88, Ano VII, pp. 58-60.
http://carlososer.blogspot.com.br/2013/01/meditacoes-sobre-pascal-luis-felipe.html


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

SEGUNDA NATUREZA EM PASCAL – O HOMEM DECAÍDO.

No pensamento de Blaise Pascal, o estudo da segunda natureza do homem (decaído) ocupa um ponto central e inquestionável na sua antropologia, uma vez que, o pecado original levou o homem à segunda natureza. Mas o que é o pecado original? Tradicionalmente, se usa essa expressão por três razões: primeiro, porque o pecado tem sua origem na época da origem da raça humana, segundo, porque é a fonte de todos os pecados atuais que mancham a vida do homem e por último, porque está presente na vida de cada indivíduo desde o momento do seu nascimento, e inda, pode ser dividido em dois elementos: culpa e corrupção. A culpa é o estado no qual se merece a condenação pela violação de uma lei ou de uma exigência e corrupção é a contaminação inerente à qual todo pecador está sujeito. É o estado pecaminoso, que se propaga e afeta todas as partes da natureza humana e resulta numa incapacidade total.

 Então, Para compreender o conceito de segunda natureza em Pascal é importante fazer algumas considerações da condição humana a ótica pascalina. Para Pascal, o homem guarda em si o antagonismo entre miséria e grandeza, o homem é ao mesmo tempo grande e pequeno, fraco e forte. Esta visão paradoxal do homem é derivada dos conceitos teológicos de pecado original e consequentemente queda, aos quais Pascal recorre para explicar a condição humana. Então, em primeira instância, o pecado original e a queda são marcas primordiais da segunda natureza humana, fundamento da existência finita e contraditória do homem.

A natureza do homem, no estado pós-queda, não é mais unitária, como o fora no primeiro estado, mas sim, é dupla, contraditória e paradoxal; em outras palavras, na segunda natureza o homem se caracteriza por sua própria miséria e inconstância. As Escrituras mostram que o pecado original causou uma terrível corrupção na natureza humana, o homem caiu da primeira natureza “estado puro”, para uma segunda natureza “estado de corrupção”. Esta queda representa o estado de miséria em que todos os homens vivem no mundo, e justifica o fato do homem ser pequeno e fraco, o mais fraco da natureza, pois vive agonizando num mundo corrompido e distante de Deus. Contudo, o homem mesmo sendo miserável e fraco não deixa de buscar a verdade e o bem puro perdido após a queda, ou seja, ele está sempre procurando refazer o elo que o ligava ao seu Criador, tendo em conta que, é uma natureza abandonada.

A segunda natureza é assim, para Pascal própria do homem, abandonado por Deus, onde reina o hábito e o costume e a concupiscência. É nesta natureza, abandonada que se erguem os princípios políticos e morais norteadores da vida efêmera do homem. Nesta concepção pascalina de segunda natureza é possível destacar que o homem é considerado um ser histórico e não natural. Sua natureza são hábitos e costumes que ele cria, é a cultura formada no tempo, portanto, é a própria existência humana finita. Assim, Pascal diz: “Não há nada que a gente não torne natural. Não há natural que a gente não faça perder” (B. 94; L. 630).

Assim, Pascal se opõe à existência do direito natural, pois no mundo humano reina a segunda natureza, que é a responsável por prescrever o direito, a moral e a política, não estando conformada com os princípios imutáveis da primeira natureza, mas em oposição a ela. Na segunda natureza reina a instabilidade, o direito supremo não pode ser encontrado, ele é da ordem da natureza, do qual homem é decaído. Então na segunda natureza, não há nada autêntico. Pascal, pensa o homem, como tendo várias determinações da condição humana, como um ser finito, contraditório e histórico-temporal. Essas determinações antropológicas constituem o estatuto epistêmico do homem distinto das categorias teológicas.

Pascal argumenta que, “se há princípios que não se apagam diante do costume”, não é que eles sejam primeiros em natureza, mas é que são princípios que, constituídos em segunda natureza (logo, em determinados costumes), justamente por isso resistem às mudanças dos costumes e hábitos, ou ainda, se preservam diante de outros costumes e hábitos mais recentes, tanto quanto há outros desses que se impõem aos mais antigos.

Ao escrever sobre a miséria humana, ou seja, a segunda natureza, Pascal aborda outro tema interessante, a diversão (divertissement). Para ele a diversão é o desvio, um descaminho, uma fuga clara diante da visão que o homem tem de sua própria miséria. E a diversão passa por se constituir na maior das misérias do homem, porque o impede de olhar para dentro de si mesmo, de tornar consciência do seu estado de comiseração, impedindo-o de seguir o único caminho capaz de leva-lo a superar a própria miséria, a desfazer-se dela para readquirir sua plena dignidade e grandeza.

Retomando a questão inicial, observa-se que, o pecado original e a queda de Adão trouxeram consequências desastrosas para ele, e para toda a humanidade. Então, entender o que aconteceu após o pecado é chave para compreendermos a situação em que o homem se encontra hoje, uma vez que, ao cometer o pecado, decaiu da sua retidão original e da comunhão com Deus, tornando-se um escravo do pecado, suas faculdades ficaram inteiramente corrompidas.

Ao ler o texto de Gênesis 3:7-24, constatam-se outras consequências: resumidamente,  após o pecado de Adão e Eva, eles foram dominados por um sentimento de vergonha e culpada, por isso, foram expulsos da presença de Deus, no entanto, tentaram salvar as aparências, ao invés de procurar o perdão de Deus, com isso, não haveria mais fuga de responsabilidade. A mulher daria a luz em meio a dores, a terra seria amaldiçoada e a natureza sofreria junto com a humanidade, compartilhando assim as consequências, a terra passou a ser estéril e o sustento passou a ser obtido com fadiga, e por fim, a morte física, mental e eterna alcança o homem definitivamente.

Como habitantes da segunda natureza, o homem ficou desprovido de qualquer relação com Deus e passou a ser dono e Senhor de si mesmo, único responsável pelos seus atos, e por isso, passou a ter uma existência exilada. Nessa segunda natureza, ainda podemos identificar vários conceitos presentes na obra Pensées, que caracterizam de fato a situação humana pós-queda: a corrupção, a busca de glória, a dissimulação da identidade, o hábito e o costume, o divertimento, a ignorância, a depravação total, a Incapacidade Espiritual...

Sendo assim, o primeiro marco dessa natureza é a busca desenfreada pela glória, e por isso, Pascal afirma: “A maior baixeza do homem é a busca da glória”, nessa procura, o homem recorre à dissimulação da sua identidade, ele não se contenta com a vida que tem, e quer viver na ideia dos outros, uma vida imaginária e por isso, esforça por manter as aparências. Se estiver feliz, tranquilo ou é generoso com alguém, apressa-se logo e partilhar com os outros provando assim a sua benevolência. O divertimento e o tédio são outras marcas dessa natureza, então Pascal nos diz (...) “a única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e, contudo, é a maior das nossas misérias, porque nos impede de pensar em nós. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele, mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte”. Outras ainda são a ignorância pura e natural, na qual se encontram todos os homens ao nascer, e aquela a que chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo quanto os homens podem saber, acham que nada sabem e voltam a encontrar-se nessa mesma ignorância da qual tinham partido e a busca e a conquista das coisas materiais, e também,  através do jogo, se busca a verdade, do mesmo modo nas paixões. O que dá prazer é assistir ao combate entre duas equipes contrárias. Mas é o hábito que nos dá provas mais fortes e mais críveis; inclina o autómato, que arrasta o espírito, sem que ele o saiba. De tudo o que acrescentar é a cegueira que o homem e a miséria do homem, que ao contemplar o universo, ele se sente abandonado si mesmo e como que perdido nesse recanto do universo, sem saber quem o depôs ali, o que aí veio fazer, o que será dele ao morrer, incapaz de qualquer conhecimento, sente-se aterrorizado como um homem que tivesse adormecido numa ilha deserta e aterrorizante e que despertasse sem saber onde está e sem condições de sair dali. 

Na situação dramática na qual o homem se encontra, ele não pode evitar o pecado sem a graça. Ou seja, a superação da segunda natureza, reside na graça, Isto significa que, sem a graça, o homem não é capaz de observar um comportamento moralmente reto.



Bibliografia  
PASCA, Blaise “Filosofia comentada” António G. da Silva – Editora Lafonte 2011



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A NATUREZA DO HOMEM ANTES E DEPOIS DO PECADO

O estudo da natureza humana em Pascal foi inspirado na doutrina do pecado original que se apoia em várias passagens das Escrituras: a Epístola de Paulo aos Romanos  (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15:22), e uma passagem do Salmo 51. Essa doutrina cristã que pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal através da queda do homem “Adão”. este ponto de partida, é realmente fundamental a toda reflexão de Pascal. 

Mas, a primeira exposição sistemática sobre o pecado original é a de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), no século IV, que associa o pecado à culpa herdada por todo o gênero humano que devido ao orgulho e egoísmo de Adão, rejeitou o amor e a obediência devida a Deus. Assim sendo, o pecado original tem para Agostinho, assim como para Pascal, um caráter hereditário, pois em Adão toda a humanidade pecou, abrindo as portas para a entrada do mal, da morte física e espiritual e de todas as suas consequências.

Pascal, influenciado pelo cristianismo e, sobretudo por Santo Agostinho, analisa a condição humana, que se espelha na vida de Adão, antes e depois do pecado, ou seja, da queda que atirou não só Adão, mas toda a humanidade da primeira à segunda natureza desgraçada.

As duas primeiras criaturas que temos conhecimento através da Escritura Sagrada, são Adão e Eva, porém, Pascal não se atende em analisar a relação entre os dois, nem tão pouco, a influência que ela exerceu sobre Adão, que o levou a cometer o pecado, que marcaria não só a vida do casal, mas também a humanidade em geral. Pascal usa a figura de Adão enfatizar a gravidade que o pecado exerce na vida de cada homem e particular e da humanidade em geral.

Assim, segundo Pascal, o estado em que Adão encontrava-se antes do pecado, ou seja, a primeira natureza era de santidade e, sobretudo, de inteligência completa e total. No estado de perfeição todas as faculdades de Adão eram ordenadas para lhe permitir atingir a felicidade representada pela visão e pelo conhecimento de Deus. Além disso, a natureza inteira estava disposta em função de Deus, segundo uma hierarquia que permitia atingir a felicidade máxima. Os seres estavam dispostos em sequência ordenada, do menos perfeito ao mais perfeito, cada um dominado pela vontade do ser superior que o dirigia, em compensação a essa dominação, rumo à felicidade.

O mesmo acontecia com cada ser, todas as suas faculdades, seguindo a mesma hierarquia. Assim, as faculdades humanas estavam submetidas umas às outras em função do seu grau de perfeição e de participação na felicidade total de Adão.

A concupiscência estava subordinada à vontade que se deixava guiar pelo intelecto. Este, oferecendo uma visão e um conhecimento perfeito de Deus, permitia, ao homem atingir a sua felicidade completa. Os membros do homem, por sua vez, obedeciam completamente e sem oposição às ordens que vinham da vontade, pois não era o lugar de aplicação de uma lei oposta à que neles estava presente.

Entre a concupiscência, “o amor da carne”, a caridade, “amor de Deus”, não havia oposição, mas subordinação. Esse estado e inocência natural é inseparável aos dons da graça, e é identificada com a natureza original do Homem.

Em si mesma, a vontade não é senão o desejo de querer atingir o que satisfaz, independente de qualquer objeto particular. Visto que, o desejo natural, de todos os seres humanos é a felicidade, a vontade se dirige para os objetos que o intelecto lhe indica como podendo dar-lhe o máximo de ventura. Nesses estados o homem não ama senão a Deus, no qual encontra a sua beatitude. Todo o amor que tem por si mesmo ou que dedica às criaturas, não passa de um amor parcial, que é um meio que, parando nas criaturas, tem por fim o amor de Deus, isto é, a caridade. Quando o homem respeita essa ordem ele é glorioso e poderoso. Mas o homem querendo se igualar a Deus movido pela ambição acabou caindo na segunda natureza, que fez dele um ser mísero e paradoxal.

Então, o estudo do estado, ou da "natureza" em que Adão se encontrava, revela alguns dados essenciais. Ainda que sem qualquer sujeição à concupiscência, isto é, sem sofrer a terrível atração pelo amor de si mesmo, Adão, para realizar o seu fim supremo, necessita da ação divina, uma vez que, a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal.

 Se a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal, a segunda é a insuficiência vivida com o mal – insuficiência concupiscente. Na segunda natureza, esta que o homem encontra em seu estado de decaimento após o pecado original, a existência se humana constitui radicalmente enquanto "hábito" "costume", e não mais de modo algum como "nature vraie".  Este princípio “Queda”, que Pascal trabalha, tem a sua origem no pecado do homem diante do seu criador. O homem quis fazer de si causa final e objeto de delícias prescindindo-se, do único e digno de tal status: Deus. Por essa razão, o homem-criatura foi precipitado a um segundo estado de natureza. Já não mais em um estado sadio como fora criado outrora, mas sim um estado no qual as suas misérias lhe são visíveis, e mais, são causa de inquietude e tormento.

O pecado consiste num ato de orgulho da vontade que se revela contra a ordem em que se encontrava o homem[1], e muda o centro da sua vida. Em vez de considerar Deus como centro e objeto de seu amor, o homem coloca a vontade no centro do seu amor. Essa mudança atinge todos os planos do ser humano.

No interior do homem, a razão foi atingida por três vezes: não pode conhecer os primeiros princípios que lhe são comunicados pelo coração; a verdade não pode ser recebida na alma a menos que seja aceite pela vontade, que é o guia do intelecto; a razão é atingida uma terceira vez pela guerra que ela trava com a imaginação. Essas três limitações fazem com que a razão não esteja em condição de fixar um valor às coisas.

Se no estado de perfeição, a razão, que encontrava a sua fonte na luz comunicada por Deus, estava em condição de guiar todas as suas faculdades, no estado de pecado, ele se deixa guiar pelos sentidos na busca do prazer da carne. Os sentidos orientam a razão, rumo ao conhecimento da criatura, e a satisfação de todas as necessidades do corpo enquanto carne. No estado de pós-queda, o homem encontra-se numa situação tal que, tendo a vontade operado esse deslocamento, os sentidos podem indicar à razão onde se encontra o prazer e levá-lo ao conhecimento dos objetos que o satisfaçam. Mas, fazendo-se de si, o centro inverteu também a ordem hierárquica em que se encontrava em relação aos outros seres.

Antes do pecado havia uma espécie de graduação dos seres, que partindo do mais baixo grau de perfeição, o dos animais, passando pelos homens chegando até Deus, definia também estados de dominação dos mais perfeitos sobre os menos perfeitos. Amor de Deus e submissão à sua vontade coincidiam perfeitamente na vontade do homem. Assim, todos os seres animados lhe eram submissos, como ele próprio era submisso a Deus. Depois do pecado a desordem introduzida no mundo pela mudança do centro, o desejo repercutiu também nas relações de dominação e de submissão, assim como entre o homem e a criatura. O pecado subverteu a ordem em que as faculdades humanas estavam dispostas, perturbando a hierarquia que lhes permitia atingir a visão de Deus. O intelecto, e o espírito sofreram as consequências do pecado que enfraqueceu de modo considerável as suas capacidades.

Concordamos com Pascal, quando afirma que, “...o homem é uma criatura que o pecado impede de coincidir consigo mesmo, esquartejada entre o coração que sabe com certeza um saber indemonstrável e a razão que não pode senão tender para o saber convincente”. Diante deste quadro, afirmamos que, a antropologia pascaliana, fundado num princípio teológico (o homem é um ser decaído), é, antes de tudo, uma antropologia que se pode observar, pois é passível de verificação na realidade (o homem não é soberano). A queda é um mito que explica o que vemos no quotidiano.

Assim, em resumo,  elenca-se um conjunto de consequências do pecado original, começando pela destruição da harmonia entre a criatura e o criador, pelo rompimento do domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo, pela  união entre o homem e a mulher que passa a ser  submetida a tensões, e por isso, suas relações passam a ser  marcadas pela cupidez e pela dominação, pela hostilidade que passa a habitar o ser do homem, pela servidão e corrupção, e, finalmente, se realiza a consequência explicitamente anunciada para o caso de desobediência: o homem 'voltará ao pó do qual é formado' a corrupção universal em decorrência do pecado. Portanto, a morte entra na história da humanidade.


'Pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores'(Rm 5,19). 'Como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...'(Rm 5,12).

A problemática das duas naturezas, que vimos, apresenta um conceito de insuficiência não sob um formato de falta de algum componente estrutural, mas de um cenário no qual a insuficiência surge como consequência de uma não organização entre os componentes antropológicos do homem: Adão era feliz e desejou o mal. Pensar o homem como um ser atormentado por ter duas naturezas é uma das figuras mais fortes da condição insuficiente, pois ela nos remete a uma espécie de falta de funcionalidade humana em virtude de uma multiplicidade de estruturas antropológicas componentes.

Pode-se concluir que, na antropologia pascalina, o homem é o que ele é, antes e depois do pecado, não porque é um senhor  sem Deus, mas porque Deus planeou o Homem como uma criatura, que só pode ser completa quando ligada a si, e, por meio dele o home se realiza como criatura que  necessita de ser resgatado pelo amor de Deus perdida com a Queda.



Bibliografia:
PARRAZ, Ivonil. A Existência em Pascal. Filosofia: (2008). ciência & vida, São Paulo, n. 20, p. 28-37. 
GASTON, Henry Gouhier. Blaise Pascal: “Conversão e Apologética”. (Março de 2000) Tradução de E. M. Itokazu – H. Santiago. São Paulo: Discurso Editorial, 
PONDÉ, Luiz Felipe. O Homem Insuficiente (1979). Comentários de Antropologia pascaliana São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 
http://www.uece.br/polymatheia/dmdocuments/polymatheia_v4n5_segunda_natureza_pascal_hegel.pdf
[1] PASCAL - “ Oeuvres Complétes, pág. 952” ... O pecado original somos todos culpados...”