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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A NATUREZA DO HOMEM ANTES E DEPOIS DO PECADO

O estudo da natureza humana em Pascal foi inspirado na doutrina do pecado original que se apoia em várias passagens das Escrituras: a Epístola de Paulo aos Romanos  (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15:22), e uma passagem do Salmo 51. Essa doutrina cristã que pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal através da queda do homem “Adão”. este ponto de partida, é realmente fundamental a toda reflexão de Pascal. 

Mas, a primeira exposição sistemática sobre o pecado original é a de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), no século IV, que associa o pecado à culpa herdada por todo o gênero humano que devido ao orgulho e egoísmo de Adão, rejeitou o amor e a obediência devida a Deus. Assim sendo, o pecado original tem para Agostinho, assim como para Pascal, um caráter hereditário, pois em Adão toda a humanidade pecou, abrindo as portas para a entrada do mal, da morte física e espiritual e de todas as suas consequências.

Pascal, influenciado pelo cristianismo e, sobretudo por Santo Agostinho, analisa a condição humana, que se espelha na vida de Adão, antes e depois do pecado, ou seja, da queda que atirou não só Adão, mas toda a humanidade da primeira à segunda natureza desgraçada.

As duas primeiras criaturas que temos conhecimento através da Escritura Sagrada, são Adão e Eva, porém, Pascal não se atende em analisar a relação entre os dois, nem tão pouco, a influência que ela exerceu sobre Adão, que o levou a cometer o pecado, que marcaria não só a vida do casal, mas também a humanidade em geral. Pascal usa a figura de Adão enfatizar a gravidade que o pecado exerce na vida de cada homem e particular e da humanidade em geral.

Assim, segundo Pascal, o estado em que Adão encontrava-se antes do pecado, ou seja, a primeira natureza era de santidade e, sobretudo, de inteligência completa e total. No estado de perfeição todas as faculdades de Adão eram ordenadas para lhe permitir atingir a felicidade representada pela visão e pelo conhecimento de Deus. Além disso, a natureza inteira estava disposta em função de Deus, segundo uma hierarquia que permitia atingir a felicidade máxima. Os seres estavam dispostos em sequência ordenada, do menos perfeito ao mais perfeito, cada um dominado pela vontade do ser superior que o dirigia, em compensação a essa dominação, rumo à felicidade.

O mesmo acontecia com cada ser, todas as suas faculdades, seguindo a mesma hierarquia. Assim, as faculdades humanas estavam submetidas umas às outras em função do seu grau de perfeição e de participação na felicidade total de Adão.

A concupiscência estava subordinada à vontade que se deixava guiar pelo intelecto. Este, oferecendo uma visão e um conhecimento perfeito de Deus, permitia, ao homem atingir a sua felicidade completa. Os membros do homem, por sua vez, obedeciam completamente e sem oposição às ordens que vinham da vontade, pois não era o lugar de aplicação de uma lei oposta à que neles estava presente.

Entre a concupiscência, “o amor da carne”, a caridade, “amor de Deus”, não havia oposição, mas subordinação. Esse estado e inocência natural é inseparável aos dons da graça, e é identificada com a natureza original do Homem.

Em si mesma, a vontade não é senão o desejo de querer atingir o que satisfaz, independente de qualquer objeto particular. Visto que, o desejo natural, de todos os seres humanos é a felicidade, a vontade se dirige para os objetos que o intelecto lhe indica como podendo dar-lhe o máximo de ventura. Nesses estados o homem não ama senão a Deus, no qual encontra a sua beatitude. Todo o amor que tem por si mesmo ou que dedica às criaturas, não passa de um amor parcial, que é um meio que, parando nas criaturas, tem por fim o amor de Deus, isto é, a caridade. Quando o homem respeita essa ordem ele é glorioso e poderoso. Mas o homem querendo se igualar a Deus movido pela ambição acabou caindo na segunda natureza, que fez dele um ser mísero e paradoxal.

Então, o estudo do estado, ou da "natureza" em que Adão se encontrava, revela alguns dados essenciais. Ainda que sem qualquer sujeição à concupiscência, isto é, sem sofrer a terrível atração pelo amor de si mesmo, Adão, para realizar o seu fim supremo, necessita da ação divina, uma vez que, a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal.

 Se a primeira natureza é uma realidade insuficiente sem o mal, a segunda é a insuficiência vivida com o mal – insuficiência concupiscente. Na segunda natureza, esta que o homem encontra em seu estado de decaimento após o pecado original, a existência se humana constitui radicalmente enquanto "hábito" "costume", e não mais de modo algum como "nature vraie".  Este princípio “Queda”, que Pascal trabalha, tem a sua origem no pecado do homem diante do seu criador. O homem quis fazer de si causa final e objeto de delícias prescindindo-se, do único e digno de tal status: Deus. Por essa razão, o homem-criatura foi precipitado a um segundo estado de natureza. Já não mais em um estado sadio como fora criado outrora, mas sim um estado no qual as suas misérias lhe são visíveis, e mais, são causa de inquietude e tormento.

O pecado consiste num ato de orgulho da vontade que se revela contra a ordem em que se encontrava o homem[1], e muda o centro da sua vida. Em vez de considerar Deus como centro e objeto de seu amor, o homem coloca a vontade no centro do seu amor. Essa mudança atinge todos os planos do ser humano.

No interior do homem, a razão foi atingida por três vezes: não pode conhecer os primeiros princípios que lhe são comunicados pelo coração; a verdade não pode ser recebida na alma a menos que seja aceite pela vontade, que é o guia do intelecto; a razão é atingida uma terceira vez pela guerra que ela trava com a imaginação. Essas três limitações fazem com que a razão não esteja em condição de fixar um valor às coisas.

Se no estado de perfeição, a razão, que encontrava a sua fonte na luz comunicada por Deus, estava em condição de guiar todas as suas faculdades, no estado de pecado, ele se deixa guiar pelos sentidos na busca do prazer da carne. Os sentidos orientam a razão, rumo ao conhecimento da criatura, e a satisfação de todas as necessidades do corpo enquanto carne. No estado de pós-queda, o homem encontra-se numa situação tal que, tendo a vontade operado esse deslocamento, os sentidos podem indicar à razão onde se encontra o prazer e levá-lo ao conhecimento dos objetos que o satisfaçam. Mas, fazendo-se de si, o centro inverteu também a ordem hierárquica em que se encontrava em relação aos outros seres.

Antes do pecado havia uma espécie de graduação dos seres, que partindo do mais baixo grau de perfeição, o dos animais, passando pelos homens chegando até Deus, definia também estados de dominação dos mais perfeitos sobre os menos perfeitos. Amor de Deus e submissão à sua vontade coincidiam perfeitamente na vontade do homem. Assim, todos os seres animados lhe eram submissos, como ele próprio era submisso a Deus. Depois do pecado a desordem introduzida no mundo pela mudança do centro, o desejo repercutiu também nas relações de dominação e de submissão, assim como entre o homem e a criatura. O pecado subverteu a ordem em que as faculdades humanas estavam dispostas, perturbando a hierarquia que lhes permitia atingir a visão de Deus. O intelecto, e o espírito sofreram as consequências do pecado que enfraqueceu de modo considerável as suas capacidades.

Concordamos com Pascal, quando afirma que, “...o homem é uma criatura que o pecado impede de coincidir consigo mesmo, esquartejada entre o coração que sabe com certeza um saber indemonstrável e a razão que não pode senão tender para o saber convincente”. Diante deste quadro, afirmamos que, a antropologia pascaliana, fundado num princípio teológico (o homem é um ser decaído), é, antes de tudo, uma antropologia que se pode observar, pois é passível de verificação na realidade (o homem não é soberano). A queda é um mito que explica o que vemos no quotidiano.

Assim, em resumo,  elenca-se um conjunto de consequências do pecado original, começando pela destruição da harmonia entre a criatura e o criador, pelo rompimento do domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo, pela  união entre o homem e a mulher que passa a ser  submetida a tensões, e por isso, suas relações passam a ser  marcadas pela cupidez e pela dominação, pela hostilidade que passa a habitar o ser do homem, pela servidão e corrupção, e, finalmente, se realiza a consequência explicitamente anunciada para o caso de desobediência: o homem 'voltará ao pó do qual é formado' a corrupção universal em decorrência do pecado. Portanto, a morte entra na história da humanidade.


'Pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores'(Rm 5,19). 'Como por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...'(Rm 5,12).

A problemática das duas naturezas, que vimos, apresenta um conceito de insuficiência não sob um formato de falta de algum componente estrutural, mas de um cenário no qual a insuficiência surge como consequência de uma não organização entre os componentes antropológicos do homem: Adão era feliz e desejou o mal. Pensar o homem como um ser atormentado por ter duas naturezas é uma das figuras mais fortes da condição insuficiente, pois ela nos remete a uma espécie de falta de funcionalidade humana em virtude de uma multiplicidade de estruturas antropológicas componentes.

Pode-se concluir que, na antropologia pascalina, o homem é o que ele é, antes e depois do pecado, não porque é um senhor  sem Deus, mas porque Deus planeou o Homem como uma criatura, que só pode ser completa quando ligada a si, e, por meio dele o home se realiza como criatura que  necessita de ser resgatado pelo amor de Deus perdida com a Queda.



Bibliografia:
PARRAZ, Ivonil. A Existência em Pascal. Filosofia: (2008). ciência & vida, São Paulo, n. 20, p. 28-37. 
GASTON, Henry Gouhier. Blaise Pascal: “Conversão e Apologética”. (Março de 2000) Tradução de E. M. Itokazu – H. Santiago. São Paulo: Discurso Editorial, 
PONDÉ, Luiz Felipe. O Homem Insuficiente (1979). Comentários de Antropologia pascaliana São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 
http://www.uece.br/polymatheia/dmdocuments/polymatheia_v4n5_segunda_natureza_pascal_hegel.pdf
[1] PASCAL - “ Oeuvres Complétes, pág. 952” ... O pecado original somos todos culpados...”


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