Por Miguel Duclós.
Não conhecemos nem o estado glorioso de Adão, nem a
natureza do seu pecado, nem a transmissão que dele se fez em nós. São coisas
que se passaram no estado de uma natureza toda diferente da nossa e que vão
além da nossa capacidade presente (Pascal 7, fr. 560/431, pág. 176).
Pascal
evita especulações excessivas sobre o paraíso adâmico, ao contrário de
Agostinho que discorre longamente sobre o assunto. Entretanto, nos Escritos
sobre a graça, o apologista vê-se obrigado a tratar da questão (e para isso
apela para a teologia agostiniana) para garantir que a condenação de Adão não
foi injusta e que este teve o poder e a liberdade de pecar. Assumindo o pecado
original, Pascal pode se calar sobre a questão da transmissão do pecado. Esta
obscuridade, porém, não nos impede de ver que o pecado teve alcance infinito e
que a culpabilidade foi humana.
O
homem quis fazer-se centro de si mesmo. Sua grandeza junto a Deus fê-lo pensar
que podia ser grande por si só. O orgulho levou-o, deste modo, para a miséria.
Se não tivesse feito isso, Adão poderia ter uma eternidade de vida e felicidade
para si e seus descendentes. Pecando, obteve dor, sofrimento, morte e
condenação eterna para toda a humanidade. Após o pecado, o homem tornou-se
pequeno e miserável, e por isso nenhuma de suas boas ações pôde compensar o mal
criado por Adão. Só ele tinha a grandeza para escolher livremente, sem atrações
irresistíveis, entre o mal e o bem eterno, só ele tinha proporção com o
infinito. Por esta razão é justo que Deus condene toda a posteridade em nome do
pecado de Adão: nenhuma das virtudes humanas pode recuperar tal
proporção. Através de Adão, o homem escravizou-se à concupiscência. Como
diz Pascal na
Carta sobre a morte de seu
pai: Deus
criou o Homem com dois amores, um por Deus, outro por si mesmo; mas com esta
lei, que o amor por Deus seria infinito, isto é, sem nenhum outro fim além de
Deus mesmo, e que o amor por si mesmo seria finito e ligando-se a Deus. (...) O
pecado tendo chegado, o homem perdeu o primeiro destes amores; e o amor por si
ficou nesta grande alma capaz de um amor infinito; este amor próprio se
estendeu e inundou o vazio deixado pelo amor de Deus; e assim ele se amou por
si e a todas as coisas por si, isto é, infinitamente. (Pascal 6,
pág. 277)
A
partir disto, o homem tornou-se um campo de batalha: o corpo luta contra a alma
e ambos lutam contra Deus. A carne passou a ser uma inimiga ferrenha da
salvação e dominou todo o ser humano. Por isso, nenhuma possibilidade de
conversão existe enquanto o homem não odeia a si mesmo e se anula totalmente
para se colocar à disposição de Deus. A conversão verdadeira consiste
em aniquilar-se diante desse ser universal que tantas vezes tem sido irritado e
que pode perder-vos legitimamente a todo momento. (Pascal 7, fr.
470/378, pág. 153
A existência humana, para Pascal, é paradoxal, quando colocada em relação com os dois extremos opostos, tudo e nada. Existe um dualismo presente em todas as coisas. A busca pela superação deste paradoxo nos leva a formular uma série de teorias, que quando aceitas, trazem de volta ao bem estar e ao terreno seguro e constante do Ser.
Nos pensamentos de Pascal, a condição humana é colocada em relação: ele tanto pode ser como não ser. O tema dos dois extremos opostos aparece em várias passagens dos Pensamentos: “o homem é nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada”. Para Pascal, o homem é este ponto intermediário entre o tudo e o nada, ponto este pertencente à estrutura interna, psicológica do homem, vivendo em meio à estrutura maior do universo. Por isso, é impossível ao homem conhecer a verdade, pois esta exige o conhecimento dos dois extremos.
O ser humano é um ser deslocado perante a imensidão da natureza, e esta não lhe é ermitido conhecê-la nem de maneira mais vaga. O homem está deslocado justamente por causa do seu odiável e tirano eu, que de forma irreal, se coloca como o centro do mundo, para poder construir o mundo perceptivo e social visto através de sua perspectiva. O eu não é em si, mas algo criado. Para manter seu amor ao eu, o homem tem de inventar inúmeros mentiras e disfarces. O caráter intrínseco do eu e da personalidade humana, é, portanto, hipocrisia e enganação.
O tema do eu na filosofia ganha tratamento específico a partir de Descartes. Porém, no desenvolvimento do seu próprio pensamento filosófico, e especialmente depois de sua conversão ao cristianismo, Pascal se põe numa posição contrária à orientação racionalista de Descartes. Pascal julga pretensioso o projeto que Descartes de dar os alicerces da construção de uma ciência universal, e não concorda com Descartes, que através de sua dúvida metódica, reduziu o mundo a uma dimensão solipsista, até chegar à primeira verdade: o eu é uma coisa que pensa. Pascal condena o uso de Deus em Descartes, que serviria “apenas” para objetivar o mundo.
Embora Pascal releve importância fundamental ao pensamento, seu eu está bem longe da concepção de cogito cartesiano, que é a condição primeira para a existência, e portanto do saber humano. Em Descartes, o ponto fixo é a busca desta verdade primeira, sob a qual se pode erguer o edifício das ciências, que resultou no cogito. Em Pascal, o ponto fixo está ligado à busca de princípios morais fixos, uma vez que o eu está sempre em movimento. A natureza do homem é movimento, fluxo, só os mortos permanecem em repouso.
Se para Descartes o cogito é como a alavanca de Arquimedes que permite mover o mundo, para Pascal o ponto fixo é um ponto de vista que adequado para refletir sobre a verdade e o mundo. É um ponto que lhe permite refletir sobre sua situação paradoxal, e um ponto de equilíbrio entre os dois extremos. Qualquer movimento em direção a um dos contrários é um movimento perigoso, que afasta do outro. Logo, a questão do equilíbrio passa a ser crucial. Este ponto de equilíbrio não é intermediário, mas sim o princípio de alheamento que proporciona a conciliação entre os dois extremos; mesmo sem eles deixarem de existir, o ponto de equilíbrio oferece a posição necessária para o homem refletir sobre sua condição a partir de seu próprio conflito. Este ponto é dado pela religião, quando o homem reconhece sua miséria, e por isso torna-se grande. Admitindo Deus e Jesus Cristo como o centro e a razão de todas as coisas, o homem encontra consolo e repouso para sua alma. Somente em Deus os dois extremos se unem, num círculo. Porém, para conhecer Deus, o homem deve primeiro saber-se nada. Sabendo-se nada, torna-se tudo. É este o segredo que o fino moralismo de Pascal guarda o de que, ao livrar-se de sua máscara que a arrogância, o amor e o ódio ao eu produzem, o homem consegue achar uma solução para a tensão entre os dois contrários.
Mas Deus não é conhecido pela razão. O espírito geométrico não ocupa a totalidade do espírito, o sentimento, com efeito, é mais presente do que o raciocínio. É por uma faculdade específica humana, um tipo de inteligência imediata e intuitiva, que é permitido ao homem a compreensão de que Deus existe e das verdades reveladas. O coração, diz Pascal, tem razões que a própria razão desconhece, e é ele quem permite perceber a conciliação entre os dois infinitos: a de que Jesus é o mediador entre o finito e o infinito.
Assim, está na religião, pelo menos o consolo para a verdade de que o homem, ser transitório, não passa de folha ao vento, barco navegando sem rumo pela imensidão do mundo, julgando ser verdade que é o mundo relativo a ele, e não ele em relativo ao mundo, criando seu próprio centro com o auxílio frágil do eu e da razão, um sendo uma mentira, a outra, frágil demais para conhecer a verdade. A religião, através da igreja proporciona a fusão entre sujeito e objeto. A relação com Cristo dissolve o Eu. A conduta moral deve sempre lembrar do dever de conduzir bem o pensamento. Isto significa que a verdade é complexa, feita de elementos múltiplos e discordantes. Nunca devemos nos esquecer desta verdade. Na moral de Pascal, existe, devido a esse caráter complexo, uma procura de uma prática da anatomia moral, que busca o funcionamento secreto das paixões.
Referências
DESCARTES,
René. Descartes. Volume da coleção Os Pensadores, vários livros. Editora Nova
Cultural. São Paulo, 1996.
LEBRUN, Gérard. Pascal Coleção Encanto Radical. Editora Brasiliense, São Paulo.
MARTON, Scarlett. “Pascal: a busca do ponto fixo e a prática do anatomia moral”, in Revista Discurso nº 24. Discurso Editoral, São Paulo, 1994.
PASCAL, Blaise. Pensamentos in Os Pensadores, volume XVI, editora Abril Cultural. São Paulo, 1973.
LEBRUN, Gérard. Pascal Coleção Encanto Radical. Editora Brasiliense, São Paulo.
MARTON, Scarlett. “Pascal: a busca do ponto fixo e a prática do anatomia moral”, in Revista Discurso nº 24. Discurso Editoral, São Paulo, 1994.
PASCAL, Blaise. Pensamentos in Os Pensadores, volume XVI, editora Abril Cultural. São Paulo, 1973.
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