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quinta-feira, 17 de março de 2016

PRIMEIRO DISCURSO SOBRE A CONDIÇÃO DOS GRANDES




Primeiro Discurso

Para entrar no verdadeiro conhecimento de vossa condição, considerai-a nesta imagem. Um homem é jogado pela tempestade numa ilha desconhecida cujos habitantes estavam inquietos por encontrar seu rei, que se perdera; e, tendo muitas semelhanças de corpo e rosto com esse rei, é tomado por ele e reconhecido nessa qualidade por todo esse povo. De início ele não sabia que decisão tomar, mas resolve-se enfim a entregar-se à sua boa fortuna. Ele recebeu todos os respeitos que se lhe quis dar e se deixou tratar como rei.

Mas, como não podia esquecer sua condição natural, ele refletia que não era aquele rei que esse povo procurava, e que esse reino não lhe pertencia. Assim ele tinha um duplo pensamento: um pelo qual agia como rei, outro pelo qual reconhecia seu estado verdadeiro, e que não fora mais que o acaso que o havia colocado no lugar em que estava. Ele escondia este último pensamento e descobria o outro. Era pelo primeiro que ele tratava com o povo, e pelo último que tratava consigo mesmo.

Não imaginai que seja por um acaso menor que possuís as riquezas das quais vos encontrais senhor do que aquele pelo qual aquele homem se encontrava rei. Não tendes nenhum direito por vós ou por vossa natureza, não mais que ele: e não somente não vos encontrais filho de um duque, mas não vos encontrais no mundo, senão por uma infinidade de acasos. Vosso nascimento depende de um casamento, ou antes, de todos os casamentos daqueles de quem descendeis. Mas de que esses casamentos dependem? De uma visita feita por encontro,[1] de um discurso no ar, de mil ocasiões imprevistas.

Tendes, dizeis, vossas riquezas de vossos ancestrais; mas não é por mil acasos que vossos ancestrais as adquiriram e as conservaram? Imaginais também que seja por alguma lei natural que esses bens passaram de vossos ancestrais a vós? Isso não é verdadeiro. Essa ordem somente se funda sobre a tão-só vontade dos legisladores que puderam ter boas razões, das quais porém nenhuma é tomada de um direito natural que tenhais sobre essas coisas. Se lhes tivesse agradado ordenar que esses bens, após haver sido possuídos pelos pais durante sua vida, retornariam à república após sua morte, não teríeis nenhum motivo para disso vos lamentar[2].

Assim, todo o título pelo qual possuíeis vosso bem não é um título de natureza, mas de um estabelecimento humano. Um outro giro de pensamento naqueles que fizeram as leis vos teria tornado pobre; e é somente esse encontro do acaso que vos fez nascer com a fantasia das leis favoráveis a vosso respeito que vos coloca em possessão de todos esses bens.

Não quero dizer que eles não vos pertencem legitimamente e que seja permitido a um outro de vos os violar; pois Deus, que delas é o senhor, permitiu às sociedades fazer leis para as partilhar; e quando essas leis são uma vez estabelecidas, é injusto violá-las. É o que vos distingue um pouco daquele homem que possuiria seu reino somente por engano do povo; porque Deus não autorizaria aquela posse e o obrigaria a renunciar a ele, enquanto autoriza a vossa. Mas o que vos é inteiramente comum a ele é que o direito que tendes ao vosso reino não é nada fundado, não mais que o dele, sobre alguma qualidade e sobre algum mérito que esteja em vós e dele vos torne digno. Vossa alma e vosso corpo são de si mesmos indiferentes à condição de barqueiro ou à de duque; e não há nenhum vínculo natural que os ligue a uma condição de preferência a uma outra.

Que resulta daí? Que deveis ter, como este homem de quem falamos, um duplo pensamento; e que, se agis exteriormente com os homens segundo vossa classe, deveis reconhecer, por um pensamento mais escondido contudo mais verdadeiro, que não tendes nada naturalmente acima deles. Se o pensamento público vos eleva acima do comum dos homens, que o outro vos abaixe e vos mantenha em uma perfeita igualdade com todos os homens; pois este é vosso estado natural[3].

O povo que vos admira não conhece talvez este segredo. Crê que a nobreza é uma grandeza real e considera quase todos os grandes como de uma outra natureza que os outros. Não lhes descobri esse erro, se quereis; mas não abusai dessa elevação com insolência, e sobretudo não vos desconhecei vós mesmos acreditando que vosso ser tem alguma coisa de mais elevada que o dos outros.

Que diríeis desse homem que teria sido feito rei por engano do povo, se ele viesse a esquecer de tal modo sua condição natural a ponto de imaginar que aquele reino lhe era devido, que o merecia e que ele lhe pertencia de direito? Admiraríeis sua insensatez e seu desatino. Mas há menos de insensatez e desatino nas pessoas de condição que vivem num tão estranho esquecimento de seu estado natural? 

Quão importante é este conselho! Pois todos os arrebatamentos, toda a violência e toda a vaidade dos grandes vêm de que eles não conhecem absolutamente o que são: sendo difícil que aqueles que se olhassem interiormente como iguais a todos os homens, e que estivessem bem persuadidos de que não têm nada em si que mereça essas pequenas vantagens que Deus lhes deu acima dos outros, os tratassem com insolência. É preciso esquecer-se de si mesmo para isso e crer que se tem alguma excelência real acima deles; nisso consiste essa ilusão que eu me esforço de vos descobrir[4].

PASCAL, Blaise. Três Discursos Sobre a Condição dos Grandes. Apresentação, tradução e notas de João Emiliano Fortaleza de Aquino. Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA DO MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA DA UECE FORTALEZA, V.2 N.4, VERÃO 2005, P. 201-214




[1] Rencontre: encontro; aqui no sentido de um encontro não marcado, nãoplanejado, isto é, não-proposital. Distinto de rendez-vous, encontro marcado. Pascal busca justamente acentuar nesta passagem a natureza casual, nãonecessária, da existência de quaisquer indivíduos, neste caso, dos reis.
[2] Em toda essa passagem, encontra-se a crítica pascaliana da moderna teoria do direito natural. Para ele, a vida civil não se regula por lei e/ou direito natural, mas apenas pelo convencional, pelo historicamente estabelecido, ao qual concorrem os acasos. Mas não se trata, por isso, de uma impossibilidade de legitimidade do estabelecimento humano, mas sim que tal legitimidade só pode encontrar-se no próprio estabelecimento humano, o qual, entendido como situado no estado de concupiscência, deve buscar garantir a justiça das concupiscências e, justamente assim, evitar a tirania.
[3] O “estado natural” aqui em questão não significa nenhum “estado de natureza” anterior e distinto da sociedade (ou Estado) civil, mas diz respeito à natureza do homem tal como somos e podemos nos conhecer, a saber, situados na “segunda natureza”. Em segunda natureza, somos o que somos em igualdade de corpo e de alma, não havendo neste âmbito, por natureza, qualquer distinção hierárquica, vertical, entre os indivíduos. Contudo, justamente por estarmos no estado de concupiscência da segunda natureza, distinguimo-nos horizontalmente uns dos outros por “qualidades naturais”, que nada mais são do que distintas concupiscências desenvolvidas. Por isto mesmo, a justiça significa, para Pascal, o reconhecimento das ordens distintas em que se situam as concupiscências, ordens qualitativamente distintas cujo desconhecimento produziria a tirania. 
[4] O délfico e socrático conhece-te a ti mesmo significa aqui saber-se igualmente finito, mortal, concupiscente e falível, condição para que o governante não se exceda. É esta excedência, esta démesure, que, na versão pascaliana da moral clássica do comedimento, conforma a tirania.

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