Primeiro
Discurso
Para
entrar no verdadeiro conhecimento de vossa condição, considerai-a nesta imagem.
Um homem é jogado pela tempestade numa ilha desconhecida cujos habitantes
estavam inquietos por encontrar seu rei, que se perdera; e, tendo muitas
semelhanças de corpo e rosto com esse rei, é tomado por ele e reconhecido nessa
qualidade por todo esse povo. De início ele não sabia que decisão tomar, mas
resolve-se enfim a entregar-se à sua boa fortuna. Ele recebeu todos os
respeitos que se lhe quis dar e se deixou tratar como rei.
Mas,
como não podia esquecer sua condição natural, ele refletia que não era aquele
rei que esse povo procurava, e que esse reino não lhe pertencia. Assim ele
tinha um duplo pensamento: um pelo qual agia como rei, outro pelo qual reconhecia
seu estado verdadeiro, e que não fora mais que o acaso que o havia colocado no
lugar em que estava. Ele escondia este último pensamento e descobria o outro.
Era pelo primeiro que ele tratava com o povo, e pelo último que tratava consigo
mesmo.
Não
imaginai que seja por um acaso menor que possuís as riquezas das quais vos
encontrais senhor do que aquele pelo qual aquele homem se encontrava rei. Não
tendes nenhum direito por vós ou por vossa natureza, não mais que ele:
e não somente não vos encontrais filho de um duque, mas não vos encontrais no
mundo, senão por uma infinidade de acasos. Vosso nascimento depende de um
casamento, ou antes, de todos os casamentos daqueles de quem descendeis. Mas de
que esses casamentos dependem? De uma visita feita por encontro,[1] de
um discurso no ar, de mil ocasiões imprevistas.
Tendes,
dizeis, vossas riquezas de vossos ancestrais; mas não é por mil acasos que
vossos ancestrais as adquiriram e as conservaram? Imaginais também que seja por
alguma lei natural que esses bens passaram de vossos ancestrais a vós? Isso não
é verdadeiro. Essa ordem somente se funda sobre a tão-só vontade dos
legisladores que puderam ter boas razões, das quais porém nenhuma é tomada de
um direito natural que tenhais sobre essas coisas. Se lhes tivesse agradado
ordenar que esses bens, após haver sido possuídos pelos pais durante sua vida,
retornariam à república após sua morte, não teríeis nenhum motivo para disso
vos lamentar[2].
Assim, todo o título pelo qual possuíeis vosso bem não é um título de natureza,
mas de um estabelecimento humano. Um outro giro de pensamento naqueles que
fizeram as leis vos teria tornado pobre; e é somente esse encontro do acaso que
vos fez nascer com a fantasia das leis favoráveis a vosso respeito que vos
coloca em possessão de todos esses bens.
Não
quero dizer que eles não vos pertencem legitimamente e que seja permitido a um
outro de vos os violar; pois Deus, que delas é o senhor, permitiu às sociedades
fazer leis para as partilhar; e quando essas leis são uma vez estabelecidas, é
injusto violá-las. É o que vos distingue um pouco daquele homem que possuiria
seu reino somente por engano do povo; porque Deus não autorizaria aquela posse
e o obrigaria a renunciar a ele, enquanto autoriza a vossa. Mas o que vos é
inteiramente comum a ele é que o direito que tendes ao vosso reino não é nada
fundado, não mais que o dele, sobre alguma qualidade e sobre algum mérito que
esteja em vós e dele vos torne digno. Vossa alma e vosso corpo são de si mesmos
indiferentes à condição de barqueiro ou à de duque; e não há nenhum vínculo
natural que os ligue a uma condição de preferência a uma outra.
Que
resulta daí? Que deveis ter, como este homem de quem falamos, um duplo
pensamento; e que, se agis exteriormente com os homens segundo vossa classe,
deveis reconhecer, por um pensamento mais escondido contudo mais verdadeiro,
que não tendes nada naturalmente acima deles. Se o pensamento público vos eleva
acima do comum dos homens, que o outro vos abaixe e vos mantenha em uma
perfeita igualdade com todos os homens; pois este é vosso estado natural[3].
O
povo que vos admira não conhece talvez este segredo. Crê que a nobreza é uma
grandeza real e considera quase todos os grandes como de uma outra natureza que
os outros. Não lhes descobri esse erro, se quereis; mas não abusai dessa
elevação com insolência, e sobretudo não vos desconhecei vós mesmos acreditando
que vosso ser tem alguma coisa de mais elevada que o dos outros.
Que
diríeis desse homem que teria sido feito rei por engano do povo, se ele viesse
a esquecer de tal modo sua condição natural a ponto de imaginar que aquele
reino lhe era devido, que o merecia e que ele lhe pertencia de direito?
Admiraríeis sua insensatez e seu desatino. Mas há menos de insensatez e
desatino nas pessoas de condição que vivem num tão estranho esquecimento de seu
estado natural?
Quão importante é este conselho! Pois todos os arrebatamentos,
toda a violência e toda a vaidade dos grandes vêm de que eles não conhecem
absolutamente o que são: sendo difícil que aqueles que se olhassem
interiormente como iguais a todos os homens, e que estivessem bem persuadidos
de que não têm nada em si que mereça essas pequenas vantagens que Deus lhes deu
acima dos outros, os tratassem com insolência. É preciso esquecer-se de si
mesmo para isso e crer que se tem alguma excelência real acima deles; nisso
consiste essa ilusão que eu me esforço de vos descobrir[4].
PASCAL, Blaise. Três Discursos Sobre a Condição dos Grandes. Apresentação, tradução e notas de João Emiliano Fortaleza de Aquino. Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA DO MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA DA UECE FORTALEZA, V.2 N.4, VERÃO 2005, P. 201-214
[1]
Rencontre:
encontro; aqui no sentido de um encontro não marcado, nãoplanejado, isto é,
não-proposital. Distinto de rendez-vous, encontro marcado. Pascal busca
justamente acentuar nesta passagem a natureza casual, nãonecessária, da
existência de quaisquer indivíduos, neste caso, dos reis.
[2]
Em toda essa passagem, encontra-se a crítica pascaliana da moderna teoria do
direito natural. Para ele, a vida civil não se regula por lei e/ou direito natural,
mas apenas pelo convencional, pelo historicamente estabelecido, ao qual
concorrem os acasos. Mas não se trata, por isso, de uma impossibilidade de
legitimidade do estabelecimento humano, mas sim que tal legitimidade só pode
encontrar-se no próprio estabelecimento humano, o qual, entendido como situado
no estado de concupiscência, deve buscar garantir a justiça das concupiscências
e, justamente assim, evitar a tirania.
[3]
O
“estado natural” aqui em questão não significa nenhum “estado de natureza”
anterior e distinto da sociedade (ou Estado) civil, mas diz respeito à natureza
do homem tal como somos e podemos nos conhecer, a saber, situados na “segunda
natureza”. Em segunda natureza, somos o que somos em igualdade de corpo e de
alma, não havendo neste âmbito, por natureza, qualquer distinção hierárquica,
vertical, entre os indivíduos. Contudo, justamente por estarmos no estado de
concupiscência da segunda natureza, distinguimo-nos horizontalmente uns dos
outros por “qualidades naturais”, que nada mais são do que distintas
concupiscências desenvolvidas. Por isto mesmo, a justiça significa, para
Pascal, o reconhecimento das ordens distintas em que se situam as
concupiscências, ordens qualitativamente distintas cujo desconhecimento
produziria a tirania.
[4] O délfico e
socrático conhece-te a ti mesmo significa aqui saber-se igualmente finito,
mortal, concupiscente e falível, condição para que o governante não se exceda.
É esta excedência, esta démesure, que, na versão pascaliana da moral clássica
do comedimento, conforma a tirania.
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