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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

ANTROPOLOGIA PASCALINA

No século XVII, a fundação das ciências encontra o seu ponto de partida, segundo a ordem das razões, numa análise do homem e da sua constituição, numa antropologia. É no homem que se encontra a chave que permite fundar um conhecimento verdadeiro e explicar como se pode atingi-lo. Da consciência de que o conhecimento pode ser alterado pelo trabalho das paixões, comum à maioria dos filósofos clássicos, decorre a necessidade de purificar o pensamento de todos os elementos provenientes do conhecimento sensível.
Diferente dos seus contemporâneos, Pascal não retoma o discurso sobre as paixões. Não existe na psicologia pascalina qualquer conflito entre a fé e a razão, nem entre a alma e as paixões, que viriam de algum modo impedir o pleno desabrochar da razão. É impossível para Pascal modificar o intelecto, purificando-o da influência das paixões, pois essa modificação exigiria uma perfectibilidade virtual no homem, ao passo que o pecado original lhe retirou em definitivo toda a capacidade de progresso.
 Na realidade, enquanto os seus contemporâneos pensam o homem como composto de alma e corpo, de racionalidade e concupiscência, de um elemento positivo e de um elemento negativo, Pascal embora retome essa dualidade, não pode pensá-lo como presença simultânea de um princípio positivo e um negativo no homem, a respeito do qual pensa que o pecado de Adão lhe interditou definitivamente qualquer saída do “estado de menoridade” em que está mergulhado.
Assim, a antropologia de Pascal leva em conta duas doutrinas, o que torna difícil a sua compreensão. O primeiro estrato é constituído pela concepção dualista do homem como ser dotado de uma alma e de um corpo que se poderia chamar de platónica, e o segundo é constituído pela antropologia Cristã “Santo Agostinho”, noção de pecado original.
Pascal efectua duas mudanças na teoria platónica. A primeira concerne ao corpo, englobando uma noção muito mais vasta da carne: ela designa que é material, e o que se opõe ao movimento da elevação para Deus. A segunda consiste na introdução de um novo elemento, o coração, que não pode ser identificado à alma platónica. Para compreender qual a realidade que a noção do coração abrange, pode-se, lembrar que, no momento da conversão, Deus age sobre o coração, tornando-o receptivo à sua lei. “Eu vos darei um coração novo, porei em vós um espírito novo, retirarei de vossa carne um coração de pedra e vos darei um coração de carne”.(Ezequiel, 36, 26).
O coração é considerado ao mesmo tempo o receptáculo da lei e o lugar de irradicação dessa lei no corpo e, assim, subtraído à lei oposta da carne. Pode-se considerar o coração como sinónimo de vontade que dirige o seu amor a Deus – e então será fonte de caridade e a carne será a fonte da concupiscência. Como veremos, o coração é muito mais que uma faculdade volitiva, pois pode também, conhecer.
 No centro da doutrina agostiniana, há a noção de pecado original, que constitui o momento da mudança da natureza humana. Pascal fará a distinção entre os dois estados do homem “antes e depois do pecado”, a cada um corresponde a uma visão do homem, base do seu projecto antropológico. Este, baseia-se na constatação deste duplo estado da natureza humana, que se reflete na presença de sinais de um e de outro. Colocando enfoque essa dupla natureza do homem, a apologia deve produzir um choque na razão presa na contradição entre a grandeza e a miséria do homem desconcertado pela copresença de factores incompatíveis.
É a antroplogia agostiniana que orquestra todos os movimentos que deviam compor a apologia pascalina. Mas, apesar do seu carácter originalmente religioso e do seu quadro de desenvolvimento apologético, o móvel da antropologia pascalina ultrapasssa em muito uma reflexão moral sobre o homem para abranger uma ontologia e uma epistemologia. A partir dessa antropologia Pascal pode pensar os fundamentos da natureza do homem e desenvolver as suas reflexões metodológicas.  
Verificamos que ao longo dos seus escritos, funda um campo antropológico da insuficiência humana, partindo de uma questão propriamente teológica, para chegar aos aspectos psicológico, social, político, epistemológico e mesmo ontológico dessa insuficiência.
O problema da concepção antropológica do homem se revelará como cenário de fundo para todo o seu pensamento: o homem é um ser insuficiente por definição. É a consciência desse drama humano, que na obra pascalina será tratada em diversos modelos temáticos, e é no conteúdo empírico desses modelos que entendemos por diversidade da insuficiência, contigencia e desproporção.

Arlindo Rocha



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