O
estudo da natureza humana em Pascal foi inspirado na doutrina do pecado
original que se apoia em várias passagens das Escrituras: “a Epístola de Paulo aos Romanos (5:12-21) e aos
Coríntios (1 Co 15:22), e uma passagem do Salmo 51”. A doutrina cristã que
pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência
do mal através da queda do homem “Adão”. Este ponto de partida é realmente fundamental a toda
reflexão de Pascal. Porém, a primeira exposição sistemática sobre o pecado
original é a de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), no século
IV, que associa o pecado à culpa herdada por todo o gênero
humano que devido ao orgulho e egoísmo de Adão, rejeitou o amor e a obediência
devida a Deus.
O objetivo
aqui é ver como Santo Agostinho concebe a questão do pecado original e suas
consequências perante a humanidade em geral.
Como se sabe, Santo
Agostinho partilha da ideia que Deus é o sumo bem, e tudo que Deus criou é bom
por excelência, como o homem, que gozava de plena perfeição e liberdade,
flexível ao bem e ao mal, antes do pecado. “A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum
vício.” Mas depois da queda, causada pela desobediência do primeiro homem –
Adão – à ordem de Deus, ver-se-ia enlanguescido
na injustiça, no ódio e longe do Criador. Depois da queda o homem perdeu sua
primeira condição santa, justa e forte. Vejamos o que o pecado causou ao homem
na visão de Agostinho.
Mas a atual natureza, com a qual todos vem ao
mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não
gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui
em sua constituição: vida, sentido e inteligência. O vício, no entanto, que
cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de
iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu criador ao qual não cabe
culpa alguma.
Santo Agostinho faz uma
descrição da condição do homem depois do pecado. Todos os homens são
descendentes de Adão, desta forma, assim como Adão é pai de toda humanidade,
pelo seu pecado, torna-se causa de todo pecado. “Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a
morte; e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram.” diz
São Paulo (Rm 5,12) citado por Santo Agostinho. O pecado, desta forma, é
transmitido atavicamente à toda criatura e não estamos livres dele pelas forças
da natureza, pois esta está corrompida.
A natureza humana
encontra-se doente, agora precisaria de um médico que possa restabelecer a
saúde, desta maneira, o remédio não está no próprio homem. “Assim, para Agostinho, a liberdade só podia
ser a culminação de um processo de cura.” O Mediador, Jesus Cristo, faria
este papel savífico mediante a sua misericórdia. “De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Jesus Cristo
a este mundo para salvar os pecadores [...]?”. Este porém, destinada àqueles
que Deus predestinou e escolheu por sua infinita justiça e infinita
misericórdia, pois, “[...] toda raça humana merece castigo.” Depois do pecado
de Adão, “o vício” enfraqueceria a natureza,
cobrindo-a de trevas, sendo o Mediador a luz para as trevas e a cura para uma natureza
doente.
Deus não é, para Agostinho,
causa do pecado, pois foi o próprio homem que fez mal uso do livre arbítrio que
Deus o concedeu no momento da criação, desta maneira, a fonte de todos estes
males “é o pecado original que foi
cometido por livre vontade do homem”. Antes da queda o livre arbítrio era
flexível para o bem e para o mal, mesmo com o pecado o homem continua com seu
livre arbítrio, mas este totalmente diferente daquele que se encontrava no
primeiro homem, agora suas escolhas se restringem a uma gama de amores viciosos
e maléficos. “O meu amor é meu peso.
Para onde quer que eu vá é ele que me leva.”. O pecado corromperia a
natureza e afastaria o homem do sumo Bem, Deus. Desta maneira, fazer-se-ia
necessário distinguir o que Santo Agostinho entende por natureza.
Igualmente,
quanto ao termo “natureza”. Entendemos de um jeito, quando falamos em sentido
próprio, isto é, a respeito da natureza específica, na qual o homem foi primeiramente criado no
estado de inocência. De modo diferente,
entendemos o termo “natureza” quando tratamos dessa natureza na qual como consequência
do castigo imposto ao primeiro homem, após sua condenação, nascemos mortais,
ignorantes e escravos da carne [...].
O termo “natureza”, como relata o próprio autor,
pode ser entendido de duas maneiras
específicas. A primeira seria aquela que se refere a uma natureza antes do
pecado de Adão e, a segunda, depois do pecado. O estado que se encontrava e que
se encontra o homem tem como ponto de referência Adão. O primeiro termo
natureza é aquele da inocência, seria o homem saído das mãos de Deus, bom, saudável,
forte, sem mácula, contemplando Deus face a face. Adão era o mais perfeito dos
homens e não havia como superá-lo. O segundo modo, seria aquele que
caracterizaria o homem depois do pecado de Adão, castigado e condenado por Deus
à morte, sendo assim, “mortal”,
“ignorante” e “escravo”.
Se antes do pecado o homem
desfrutava da imortalidade, através da bondade de Deus em seu ato criador, da
sabedoria, por contempla-LO face a face, e liberdade em sua capacidade de
escolha, com o pecado, estes adjetivos tornar-se-iam contrários àqueles do primeiro
estado de natureza, de maneira especial naquilo que diz respeito ao livre
arbítrio na discussão pelagiana, pois este será visto como capaz somente do mal
quando deixado sob o comando de suas próprias forças. “Dessa maneira, aprouve, muito justamente a Deus, que governa
soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro casal, com
ignorância e dificuldade no esforço e na mortalidade.” Pela justiça de Deus
os homens são condenados a viver ignorantes e mortais. “Isso porque ao pecarem foram precipitados no erro, na dor e na morte.”
As características do
primeiro estado de natureza em Santo Agostinho são diferentes do segundo estado
de natureza, logo a aplicação dos termos também se diversifica. É importante
ressaltar que Santo Agostinho não fala de duas naturezas, pois, desta maneira,
cairia em contradição com a tese de que Deus não é causa do pecado. Se Deus
criasse as duas naturezas, a primeira não haveria problemas, pois trata-se de
uma natureza boa, no entanto, a segunda natureza criada seria corrompida e Deus
não poderia criar nada corrompido, mesmo porque, a corrupção nada mais é do que
a ausência de Deus, ou seja, aquilo que Agostinho chama de mal.
Diante
desta distinção do conceito de natureza construída ainda quando dialoga com os
maniqueus, Santo Agostinho estaria apto para, mais tarde, responder à
intervenção de Pelágio173 que, diante da afirmação de Santo Agostinho que a
natureza, depois do pecado de Adão, é má, acusa-o de substancializar o pecado,
o que é o mesmo que substancializar o mal.
Se dermos por certo que o
pecado não é substância, não se diria também que o não comer, para não falar de
outras coisas, não é substância? Dir-se-ia melhor que é o privar-se da
substância, pois o alimento é substância. Mas o abster-se de alimento não é
substância, mas a substância corporal, se se priva do alimento, de tal modo se
enfraquece, deteriora-se pelo desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças,
se extenua e se abate pela lassidão que, se de algum modo continua vivendo, mal
poderá se acostumar novamente ao alimento, cuja abstenção foi causa de sua
ruína.
O pecado não é substância, assim como o não
comer não é substância. Mas o que é substância para Santo Agostinho? “[...]
Deus é substância [...].” O nome “substância”,
que problematiza aquilo que seria o mal, é dado porque, sendo a substância algo
que subsiste por si mesmo, ou seja, Deus, o mal não poderia ser
substancializado de maneira nenhuma, e nisto concordam tanto Agostinho quanto
Pelágio. Para sair da acusação da substâncialidade do mal por Pelágio, Santo
Agostinho recorre a uma analogia: “o não
comer”. O não comer não é substância, mas é o “privar-se da substância”, pois neste caso, o que caracteriza a
substancialidade é o alimento. O alimento, para Agostinho, não é Deus – em um
sentido panteísta –, pois, não podemos esquecer que esta passagem é uma analogia
metafórica. Sendo o alimento a substância, privar-se dele deteriorizaria o
corpo e, consequentemente, “desequilibraria
a saúde” minando as forças e consolidando um estado de cansaço que causaria
a morte.
Mesmo “o não comer” não sendo uma substância, ele é capaz de deteriorar o
corpo, assim como o pecado que, mesmo não sendo uma substância, pode corromper
o corpo. Será necessário o alimento para novamente estabelecer o corpo em seu
estado de saúde, da mesma forma que precisar-se-á, para estabelecer a alma, da
cura de seus males.
O pecado original, fonte de
todos os males, prejudica ativamente o homem, desta maneira, devemos temer tudo
aquilo que é pecaminoso, pois “[...] com esse nome se expressa o ato de uma má
ação.” Santo Agostinho tenta livra-se das acusações de maniqueísta por parte
dos pelagianos, pois, se fosse afirmado uma substancialidade ao mal, consequentemente
Deus, que é criador de tudo, seria criador do mal, no entanto, como de Deus
nada provém que não seja bom, o mal existiria per si, como uma entidade
absoluta. Sendo o mal manifesto na corrupção da matéria e esta criada por Deus,
poderíamos supor que o mal é transmitido pela matéria? Vejamos a explicação de
Costa.
Logo,
o ponto de partida para a explicação de como se deu a transmissão do pecado
original de Adão aos seus descendentes só pode estar na alma, e o pecado só
pode partir da alma para o corpo, uma vez que, [...] o corpo é um bem neutro,
um elemento passivo ou um mero instrumento a serviço da alma, que pode
servir-se dele tanto para o bem como para o mal.
O corpo em Agostinho é
passivo, ele recebe as inerências da alma que o corrompe, desta maneira, a
corrupção atávica dar-se-ia “na alma”, pois ela é infectada pelo pecado de Adão
e transmite este pecado para toda humanidade. Mas de onde vem alma? Difícil resposta.
Todavia, uma coisa é certa: o mal tem como causa o pecado original. Mas antes de
tentar resolver o atavismo do mal, Santo Agostinho encontraria outro problema:
o livre arbítrio. Deus não poderia ser causa da queda, nem o homem coagido a
pecar, o pecado porém, insere-se na alma, desta maneira, qual a origem do
pecado de Adão – a causa é o homem ou há outra causa, perguntará Agostinho – e
como ficaria sua capacidade de escolha depois da queda? Neste momento é
necessário ressaltar uma diferença importante na obra de Santo Agostinho: a
diferença entre o livre arbítrio e a liberdade. Iniciemos esta distinção pelo
conceito de liberdade na discussão com os maniqueus.
Arlindo Rocha (Graduado em Filosofia)
Fonte Principal:
Dissertação de Mestrado
de Andrei Venturini Martins
“CONTINGÊNCIA E
IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL”
disponível do Link: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/7/TDE-2006-07-03T07:43:27Z-2340/Publico/ANDREI%20VENTURINI%20MARTINS.pdf
1 comentário:
Pelo que pude entender, Agostinho não despreza o livre arbítrio totalmente, devendo ele, após o pecado original estar inclinado ao pecado. Seria isso?
Outra dúvida, Agostinho cria na depravação total do homem? Em "Confissões", ele parece divagar sobre isso, por exemplo, ao descrever sua infância, onde praticava o mal sem ter a devida consciência disso.
Parabéns pelo blog!
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