Jean-Chaude Brisville*
Dia
24 de setembro de 1647. Fim de tarde. Em Paris, perto da Place Royale, uma
cela, no convento dos Mínimos. Mobília sumária. Uma porta, do lado direito,
está aberta. Ao levantar a cortina, Descartes, sozinho, de pé, no canto da
janela, olha par a fora. Depois, vai arrumar a mesa e as duas cadeiras. Entra
Pascoal, que pára, ao dar com Descanes, e o cumprimenta. Pascal,
24 anos. Descartes, 51 anos.
PASCAL:
Quanta honra, senhor. Ser recebido por quem está sempre de passagem é um grande
privilégio. Sei o quanto lhe custa.
DESCARTES:
Nada. Se não tivesse pedido para me ver, eu mesmo provocaria este encontro. Uma
celebridade tão precoce excita naturalmente a curiosidade – e desculpa a minha.
Entre e sente-se. Creio que temos muito a nos dizer.
PASCAL:
Uma infinidade de coisas, de fato. (Descartes convida-o, com um gesto, a
sentar-se. Pascal o saúda de novo e aceita. Descartes, por sua vez, também se
senta. Silêncio. Eles se observam um breve instante.) Antes de mais nada,
posso me permitir uma pergunta? (Descartes concorda com a cabeça.) Por
que o vemos tão raramente em Paris?
DESCARTES:
Porque, justamente, as pessoas vêm me ver – apenas me ver. Sei que não é o seu
caso: nós podemos conversar. Mas a maioria não quer senão a minha aparência,
como se eu fosse um animal exótico, atraindo o público de curiosos, pelo que
tem de estranho. Um filósofo, apesar da sua sabedoria – ou por causa dela –,
sente um pouco de pena que se prefira ver os traços do seu rosto ao fundo do
seu pensamento.(Tempo)São os ares de Paris, sem dúvida.
PASCAL:
Pode-se deixar de respirá-lo a algumas léguas daqui.
DESCARTES:
Concordo, mas por melhor que seja uma casa de campo sempre sentimos falta do
conforto da cidade, e nunca encontramos completamente a solidão perfeita que se
deseja.
PASCAL:
E a consegue em Amsterdã?
DESCARTES:
Sim... por algum tempo. Não conheço nessa cidade nenhum homen que não pratique
o comércio, exceto eu, e todos estão de tal maneira atentos aos seus lucros que
poderia passar a vida inteira sem ser visto por ninguém .
PASCAL:
Nunca imaginei que a glória lhe fosse um fardo tão pesado.
DESCARTES:
Esqueça a minha glória. Me dê esse prazer. A conversa com pessoas que estimo é
o maior bem da minha vida, e eu ficaria aborrecido se a nossa, impedida pelas
alturas em que me coloca, não se realizasse. Minha reputação não é tão grande
felizmente, e para falar sem rodeios eu mais a temo do que a desejo.
PASCAL:
Não foi o que sempre almejou?
DESCARTES:
Na sua idade, talvez... na época em que eu queria ver reconhecido o meu
pensamento.
PASCAL:
Queria?
DESCARTES:
Minha razão, hoje, me dispensa de ter razão.
PASCAL:
Disposição admirável, feito de um espírito suficientemente elevado para se
bastar. Eu não cheguei a essa satisfação e ainda penso que um homem, tendo
encontrado a verdade, deve comunicá-la aos seus comtemporâneos. Perdoe minha
ingenuidade.
DESCARTES:
Vejo-a com simpatia.
PASCAL:
Então não faria nada para convencer um interlocutor de boa fé?
DESCARTES:
Deixo esse cuidado aos meus trabalhos que estão nas livrarias e preservo a
liberdade. Não há o que eu mais preze. (Tempo)Ser livre para não
fazer nada. Ah, o lazer... que alegria.
PASCAL:
O lazer?
DESCARTES:
O que eu mais prezo é não fazer nada – pelo menos aparentemente. Porque o
lazer, vai descobrir, talvez com os anos, é uma oficina subterrânea onde o
pensamento trabalha à nossa revelia. As tentativas para impedir o meu retiro,
não as posso suportar.
PASCAL:
O que valoriza ainda mais me ter recebido.
DESCARTES: (Sorrindo): É
que tínhamos coisas a nos dizer. (tempo)Falaram-me, em Ruão, de suas
experiências. Eu mesmo tenho refletido sobre o Vácuo, e estou interessado em
saber o que pensa a respeito.
PASCAL:
Escrevi sobre isso um Tratado que está, neste momento, no prelo, e que
satisfará, espero, a sua curiosidade. Se me permitir, vou enviá-lo assim que
for publicado.
DESCARTES:
Eu o lerei com muito prazer, mas não em Paris. A rainha Cristina teve a
gentileza de pensar em mim e, apesar dos invernos do norte, que eu receio para
a minha idade, aceitei o convite. Peço, então, que remeta a sua obra para
Estocolmo. Aposto que será tema de uma das minhas conversas com essa grande
princesa. Ela é erudita e não teme as mais austeras discussões.
PASCAL:
Eu lhe enviei minha máquina aritmética: ela talvez se lembre.
DESCARTES:
A princesa tem boa memória – me disseram. (Tempo)
PASCAL:
Eis, pois, que mais uma vez está de partida...
DESCARTES:
Não tenho laços com a França. Falando com franqueza, eu me sinto um pouco em
casa em qualquer lugar da Europa, sem me sentir verdadeiramente em casa em
lugar nenhum. Mas não tem importância.
PASCAL:
Atrevo-me, no entanto, a me surpreender que um espírito livre e forte como o
seu possa se adaptar aos constrangimentos que a corte obriga.
DESCARTES:
Não estou seguro que o meu possa se adptar, mas a provação tem seu interesse.
Veja que ela ensina ao meu espírito que ele é menos livre e forte do que acreditava.
PASCAL (Sorrindo): Estou
sendo pago com um jogo de palavras? DESCARTES: É proibido sorrir?
PASCAL:
Claro que não. Mas eu não me surpreendo menos com o fato de que não tenha
encontrado um lugar; que tenha passado a vida no exílio e que nada o tenha
retido no seu país.
DESCARTES:
É verdade que eu tomei todas as precauções para não me fixar. Em trinta anos,
acho que não passei mais do que cinco na França. Mas não foi por acaso. Meu
pensamento amava viajar e se eu não tivesse vagabundeado tanto, nós teríamos
vivido juntos menos bem.
PASCAL:
Ele pedia movimento?
DESCARTES:
Queria que e escapasse aos vínculos habituais. A solidão, o silencio e minha
invisibilidade lhe pareciam preferíveis. E eu obedeci.
PASCAL:
Invisibilidade?
DESCARTES:
Digamos, a máscara. Ando mascarado desde que saí da escola. É preciso ser
astuto com os outros, se se quer pensar à vontade.
PASCAL:
Parece que, para si, pensar é a mola da vida.
DESCARTES:
Eu confesso, de bom grado, que me divirto a estudar as operações do meu
espírito e a me concentrar na minha atenção. Aquilo que eu encontro é, talvez,
menos importante do que o ato da descoberta. Há um certo fascínio em observar
seu mecanismo – e em dominá-lo. Não vá imaginar que passo meu tempo na mesa, a
escrever. Sou muito preguiçoso, como já disse, e a cama me prende
cotidianamente dez horas em vinte e quatro. Mesmo tendo dormido bastante, sinto
dificuldades em deixá-la. Mas, apesar de tudo, meu Método me apareceu na
ocisidade de um quarto aquecido. A cada um seu método. (Tempo) E o
jovem amigo, dorme bem?
PASCAL:
Muito pouco... e mal.
DESCARTES:
Deveria dar um passeio antes de se deitar. Isso relaxa os sentidos.
PASCAL:
Obrigado, pelo conselho. Aprecio-o sobretudo porque não o esperava na nossa
conversação.
DESCARTES:
Esperava mais... sim, compreendo.
PASCAL:
Não vim, admito, para ouvir aquilo que a minha ama me teria dito.
DESCARTES:
Ela sabe, tenho certeza, muito mais do que eu a respeito de certas coisas.
Enfim, já que somos gente que pensa, não vamos perder tempo com a saúde. Vejamos...
Ah, e se falássemos do Vácuo? Estou impaciente para saber o assunto do seu
opúsculo, e se me pudesse dar, em algumas palavras, uma idéia das suas
conclusões...
PASCAL:
Não me interessam mais. DESCARTES: Não diga!
PASCAL:
Já dei muito de mim para a ciência. Desde um certo encontro que tive, sei que
há coisas mais importantes e não quero me distrair. Não tenho mais tempo.
DESCARTES:
Na sua idade?
PASCAL:
Morre-se quando Deus quer. Minha saúde não é boa. É possível que isso seja uma
advertência de Deus. E depois, seja qual for o curso dos meus dias, não terei
anos suficientes para cuidar da minha salvação, que requer tudo de mim, daqui
por diante.
DESCARTES:
Renunciaria às suas pesquisas?
PASCAL: Elas só podem me levar à decepção.
DESCARTES: Como o sabe?
PASCAL: Elas só podem me levar à decepção.
DESCARTES: Como o sabe?
PASCAL:
Porque, no final das contas, não se sabe nada, e minha alma tem sede de
certezas. Devo, então, saciá-la na fonte suprema.
DESCARTES:
Mas a ciência...
PASCAL:
Nada nos diz de Deus.
DESCARTES:
Pode nos ajudar, pelo menos, a conhecer sua obra.
PASCAL:
A conhecê-la? Pois é... O que ela nos ensina é insignificante. Eu diria até que
ela aumenta nossa ignorância, fingindo dissipá-la. Além disso, que é já
bastante perigoso, ela nos inclina ao orgulho, permitindo que esperemos atingir
o alvo enquanto ele se afasta a cada passo dado em sua direção. Tudo é ilusão.
Estou convencido: nossa inteligência se perde em maus caminhos. Por mim, volto
ao centro onde está a luz da verdade.
DESCARTES (Sonhador): Ao
centro...
PASCAL: Sim, à minha única certeza.
PASCAL: Sim, à minha única certeza.
DESCARTES:
Ouvindo-o, pode-se pensar que tem o monopólio dela. Creio em Deus também, mas
sem ameaçar ninguém.
PASCAL:
Terei eu ameaçado quem quer que seja?
DESCARTES:
Havia em seu tom de voz uma tal segurança... Desconfio sempre da fé que se
exprime com esse tom.
PASCAL (Levantando-se
bruscamente): Senhor!
DESCARTES:
Não duvido da sua. Vamos, tranquilize seu espírito... e se eu o ofendi,
peço-lhe desculpas. (Tempo)Chego de um país onde se fala de Deus
serenamente.
PASCAL:
Como se pode falar dele serenamente?
DESCARTES (Sorrindo): Em
Amsterdã...
PASCAL (Também
sorrindo) Sim, tem toda razão: em Amsterdã...
DESCARTES:
É uma boa cidade.
PASCAL:
É. Para se passear.
DESCARTES:
Para pensar... para pensar, sem ser percebido.
PASCAL:
Para mim, mesmo só, no meu quarto, sem outra companhia, estou sempre sob o
olhar de Deus. (Tempo)Quando não o sinto sobre mim... (Tempo) Tenho a
impressão de cair. Um abismo que se abre à minha esquerda, onde algumas vezes
sou obrigado a colocar uma cadeira, a fim de resistir ao seu apelo.
DESCARTES:
Isso é curioso.
PASCAL: (Baixo) A
vertigem. (Tempo) Aposto que a sua coragem desconhece esse tipo de
fraqueza.
DESCARTES:
Digamos que Deus, na sua bondade, me preservou desse incômodo. Mas, há pouco,
tocou num certo encontro...
PASCAL:
Sim. Conheci recentemente dois fidalgos que um padre, um amigo do abade de
Saint-Cyran, reconduziu à fé. A conversa com eles me levou a me dar a Deus,
segundo um novo caminho.
DESCARTES:
Um novo caminho?
PASCAL:
Aquele que os senhores de Port-Royal adotaram. São pessoas muito bem
intencionadas, ainda que não sejam bem vistas pelo poder. Deve saber que o
abade de Saint-Cyran, mesmo que não se tenha observado em suas palavras ou em
seus atos qualquer falta, esteve preso cinco anos, saindo apenas para morrer, e
que se tornou extremamente perigoso dizer-se seu amigo.
DESCARTES:
Por quê?
PASCAL:
Porque ele era detestado pelos Jesuítas, os todo-poderosos do reino. Eles
influenciaram a opinião geral... é conhecida sua arte nisso...
DESCARTES:
Fui aluno deles em La Flèche.
PASCAL: Eu não sabia.
DESCARTES: Mas dizia que...
PASCAL: Eu não sabia.
DESCARTES: Mas dizia que...
PASCAL:
Que a Sorbonne e os representantes do clero colocam sob suspeita tudo o que vem
de Saint-Cyran. Ele foi amigo do bispo Jansênio e aderiu à sua concepção da
graça. Ora, ela não agradou aos Jesuítas.
DESCARTES:
Preciso confessar que estou bem longe desse tipo de discussão.
PASCAL:
Realmente, vista de Amsterdã...
DESCARTES:
Desculpe-me se volto atrás, mas não me disse – pode me corrigir se eu estiver
enganado: "No final de contas nós não sabemos nada, não se tem nenhuma
certeza?" Me parece, no entanto, que sabemos que 3 e 2 são 5.
PASCAL:
Onde quer chegar?
DESCARTES:
3 e 2 são 5?
PASCAL:
Quem pode contestar...
DESCARTES:
Eu concluiria, daí, que as matemáticas são, para todos os que sabem contar,
fonte de certeza.
PASCAL:
Ah, senhor, percebo que não estamos prontos para nos entender. É verdade – uma
certa verdade – que 3 e 2 são 5. Mas o que posso fazer com essa verdade?
Tivesse eu percorrido todo o saber de que os homens são capazes, chegaria à
ignorância com que nasci. A ignorância que se conhece... ignorância sábia, mas
ainda aSsim ignorância, e isso me deixa insatisfeito.
DESCARTES:
É bem você que está falando em ignorância?
PASCAL:
Revelada em tudo que aprendi.
DESCARTES:
Quem fez as ciências avançarem, numa idade em que se joga bola, não pode falar
dessa maneira, nem renunciar ao dom já exercido com tanta mestria...
PASCAL:
Não procurei senão escapar do tédio, da inquietação e do desgosto. O que não
foi um bom caminho.
DESCARTES:
Tédio, inquietação, desgosto?
PASCAL:
Talvez não os tenha jamais conhecido? Ah, como eu o invejo!
DESCARTES:
Nem sempre fui poupado.
PASCAL: Então, pode me compreender.
PASCAL: Então, pode me compreender.
DESCARTES:
Compreendo, quando me fala do seu tédio, mas não o acompanho quando acusa as
ciências.
PASCAL:
O que elas lhe ensinaram?
DESCARTES:
Ora, muitas coisas.
PASCAL:
Sim, que o universo não tem limites e que o homem hoje não sabe mais onde se
colocar. Olho para todas as partes e só vejo escuridão. Nós sabemos apenas que caímos do nosso lugar e que o procuramos, sem sucesso, nas trevas.
DESCARTES:
É exato que a nossa ciência é pouca e que assim que olhamos o céu...
PASCAL:
Seu silêncio eterno me apavora.
DESCARTES (Surpreso): Apavora?
PASCAL (Baixo): É,
me apavora e eu lamentaria aquele que dele não tem medo, pois deSconhece nosso
verdadeiro lugar. (Tempo) Deus é nossa morada. Nossa única felicidade
é estar com ele e nosso único mal é dele estar separado. É a religião que
nos diz, não a ciência.
DESCARTES:
Mas não diz o contrário.
PASCAL:
Ela nos faz esquecer a nossa fraqueza, onde está nossa grandeza.
DESCARTES:
Vamos, o que está dizendo! Se temos uma grandeza ela está, para mim, no
exercício soberano do pensamento. Nele. Apenas nele.
PASCAL:
Como um pensamento que não consegue apreender seu objeto confessaria nossa
fraqueza? Ou é sua pretensão dominar o infinito... a eternidade? Seria pecar
por orgulho.
DESCARTES:
Não creio pecar tentando ir mais longe nas matemáticas, que me fazem pressentir
uma representação do universo. (Tempo) O sistema do mundo talvez seja
um sistema de números. É algum escândalo pensar isso?
PASCAL:
Teria a ambição de ser o construtor de um universo inteiramente submisso à
geometria?
DESCARTES:
Já que existe a mecânica, lá em cima, eu gostaria de tentar seu cálculo.
PASCAL:
E o único homem que o lograria, mas, como a eternidade, o infinito não cabe nos
números. Por isso trememos. Não paramos de tremer.
DESCARTES:
Esse tremor perpetuo não é da minha natureza. Embora eu já o tenha
experimentado algumas vezes, realmente. Mas a solução estava no meu espírito.
PASCAL:
Uma solução para o medo?
DESCARTES:
É.
PASCAL:
No seu espírito?
DESCARTES:
No domínio que ele soube ter sobre ele mesmo. E ainda uma vez lhe peço que não
me julgue orgulhoso. Eu já disse: estudar as operações do meu pensamento, vê-lo
em ação, é meu prazer supremo. E um remédio, além do mais. Um remédio para
a inquietação e acesso à paz soberana.
PASCAL:
Alcançar a paz pelos números. Pode um cristão defender essa maneira de
raciocinar? Não vê que ela acabaria por levá-lo a prescindir de Deus?
DESCARTES:
Jamais duvidei que ele tivesse posto o mundo em movimento.
PASCAL (Sorrindo): Sim,
como um piparote, e depois não há nada a fazer com ele.
DESCARTES (Sorrindo): Se
tivesse o poder, certamente me mandaria queimar.
PASCAL:
Não, não cabe a mim julgá-lo e, menos ainda, queimá-lo, pois eu mesmo senti, um
dia, esse orgulho do espírito que tanto sofri para ultrapassar. Permito-me
apenas dizer que um verdadeiro cristão só encontra a paz em Jesus Cristo e que
só sua graça a pode conceder. Fora dela não vejo mais que distração condenável
e orgulho da inteligência.
DESCARTES:
Creio que dramatiza. Pode-se assegurar a salvação sem ferir as ciências e ser
um bom cristão, interessando-me pela geometria.
PASCAL:
Isso é pedir demais.
DESCARTES: É que ela me dá muito.
DESCARTES: É que ela me dá muito.
PASCAL:
Sem dúvida eu sou mais exigente, pois esse muito, para mim, parece pouco.
DESCARTES (Gentil): Que
intransigência.
PASCAL:
Eu meço minha vida mortal pela imortalidade da minha alma. Seria preciso ter
perdido todo o sentimento para ficar indiferente a isso. Sim, eu confesso: a
indiferença sobre a minha eternidade me irrita.
DESCARTES:
Não vemos Deus com os mesmos olhos.
PASCAL:
Creio que o deduz, não o vê. Para si, ele é um princípio, para mim, um calor.
Pensa nele, e eu o sinto. Eis toda a diferença.
DESCARTES:
Muito bem.
PASCAL:
Mas eu estou falando bastante de Deus e pouco de Jesus Cristo. Ora, nós
conhecemos Deus apenas através de seu filho, e não nos conhecemos a nós mesmos
senão através dele. Jesus Cristo é um Deus de quem nos aproximamos sem orgulho
e nos curvamos sem desespero. Ele ensinou os homens que eles eram infelizes e
pecadores... Que era preciso libertá-los, esclarecê-los e curá-los, e que isso
aconteceria se odiássemos nosso próprio eu...
DESCARTES:
No entanto, ele não disse que era preciso amar o próximo como a si mesmo?
PASCAL:
Disse.
DESCARTES:
Então, se devemos nos odiar... Enfim, deixemos isso. Poderíamos discutir a esse
respeito até o fim do mundo.
PASCAL:
Jesus estará em agonia até o fim do mundo, e eu me recuso a dormir enquanto ele
morre.
DESCARTES:
É uma alusão às minhas dez horas cotidianas de sono?
PASCAL: Não estou brincando.
PASCAL: Não estou brincando.
DESCARTES:
Mas eu também não. Respondo a essa espécie de furor contido que suspeito em
suas palavras. Ê, como se eu estivesse para ser convertido! Embora eu tenha
vivido por muito tempo num país protestante, será que preciso dizer que a nossa
religião é a mesma?
(Tempo) Eu não gosto de discussões, e sinto-o sempre próximo delas. Não leve a mal, portanto, que eu queira arejar a nossa conversação. Isso não vem de um ímpio, mas de um homem...
(Tempo) Eu não gosto de discussões, e sinto-o sempre próximo delas. Não leve a mal, portanto, que eu queira arejar a nossa conversação. Isso não vem de um ímpio, mas de um homem...
PASCAL:
De um homem que me inspira profundo respeito.
DESCARTES:
Vou tentar me satisfazer.
PASCAL:
Me perdoe, não vim aqui com a intenção de discutir. Talentoso ou não, um homem
da minha idade ainda tem muito que aprender, e só de si, provavelmente, posso
esperar alguma luz. Tenho enorme tendência a me esquentar... reconheço. Peço
que me desculpe. Mas se apóia tanto na razão que eu, pelo contrário, sou
tentado a fazer pouco dela. Para ser franco, ela não goza mais da minha inteira
confiança.
DESCARTES:
Vou talvez surpeendê-lo ao dizer que a sua autoridade me apareceu em sonho,
numa noite de novembro de 1619. Eu estava na Alemanha, mobilizado pelas
guerras, e como voltava para o exercito vindo do coroamento do imperador, o
começo do inverno me prendeu num quartel, onde permaneci todo o dia, doente e
só, num pequeno quarto aquecido. Nessa noite, então – a noite de 10 para 11 de
novembro – tive três sonhos.(Tempo) Não se preocupe: não vou atormentá-lo
contando-os. A narrativa dos sonhos alheios causa sempre um tédio mortal. Mas digo,
entretanto que a eles devo a semente do meu Método e, sem dúvida, ainda muito
mais.
PASCAL:
O que entende por isso?
DESCARTES:
A luz em que percebi, de repente, o meio de dissipar a treva mais profunda.
Assim, como pode ver, se levo em conta a razão é pelo atalho do sonho. As
vezes, trabalha-se, dormindo, para o progresso do espírito.
PASCAL:
E esses três sonhos, se me permite perguntar, acredita que vieram de Deus?
DESCARTES:
Se a minha vontade dormia, só podia vir dele.
PASCAL (Lentamente): Não
lhe ocorreu que a razão que descobre seu aval no sonho está em perigo de perder
o crédito?
DESCARTES:
Me pareceu, ao contrário, que lhe dava uma autoridade suplementar.
PASCAL:
Admiro seu culto à razão, mas para mim ela não conseguiu nunca me fazer
esquecer a finalidade da vida. Me esforço em vão para ser valente, sei que
dentro de poucos anos algumas pás de terra serão jogadas sobre a minha cabeça e
tudo aquilo que ponho diante de mim para impedir que eu veja o precipício não
me impede de correr para ele. O que pode a razão contra isso?
DESCARTES:
Nada.
PASCAL:
Todos os prazeres são vaidade. Estou convicto de que não existe a verdadeira
satisfação e que sou uma sombra ligada, por um breve instante, a um canto do
universo. Tudo o que sei é que devo morrer logo, mas o que mais ignoro é esta
própria morte que não poderei evitar.
DESCARTES:
Concordo.
PASCAL:
Mas a geometria não deixa de ter, para si, a mesma importância.
DESCARTES:
Correto.
PASCAL:
Não o compreendo.
DESCARTES:
Saber que se deve morrer impede de viver e pensar? Acho que confio mais em
Deus. Se a minha alma pertence a ele, o uso que faço do meu espírito diz respeito
a mim. Enquanto pensar, existirei. Quanto ao resto...
PASCAL:
E assim que se pode definir a eternidade? O resto... Para mim é tudo.
DESCARTES:
Um tudo que por aqui não se conhece – e é isso que o apavora e que não aceita.
Pretende apreender o inapreensível.
PASCAL:
Somente sondo o abismo e sofro a sua atração.
DESCARTES:
Para mim, refletir sobre a morte, o infinito e a eternidade é um trabalho que
ultrapassa a minha inteligência. Eu não gostaria de abusar do pouco tempo e do
lazer que me restam utilizando-os para desvendar semelhantes dificuldades.
PASCAL:
Sempre a inteligência acima de tudo. Ela nada tem a ver com isso. Na ordem das
coisas a serem compreendidas, ela ocupa o mesmo lugar, para mim, que o nosso
corpo na extensão da natureza. Ou seja, o último.
DESCARTES:
O que põe na frente?
PASCAL:
Um sentimento que parece jamais tê-lo atingido.
DESCARTES:
Diga.
PASCAL:
A miséria do homem.
DESCARTES:
Me atinge também, ainda que de maneira menos abstrata. Na sua idade, raramente
vemos morrer alguém que se ama. O que aconteceu comigo. (Tempo) Conheci
uma mulher na Holanda, uma simples doméstica, que soube tocar meu coração. A
filha que tive dela, e que chamamos de Francine, aos cinco anos pegou
escarlatina. Morreu dia 7 de setembro de 1640. Nunca vou esquecer esta data.
Ela marca o dia em que senti a mais pavorosa das dores.
PASCAL (Comovido): Compreendo.
DESCARTES: (Baixo): Não
sou daqueles que pensam que as lágrimas pertencem apenas às mulheres.
PASCAL:
Já vi um homem chorar, não sei porque me lembro dele hoje. Meu pai foi mandado
pelo cardeal para reprimir uma revolta de camponeses na Normandia, com as
tropas do marechal de Gassion. A coleta dos impostos era brutal. Eu tinha
dezessete anos na época e acho que meu pai... enfim, ele era, por sua firmeza,
o homem que a situação requeria. Naquele dia, acompanhei meu pai com os
soldados, a uma aldeia. Um homem de quem tinham tirado os bens e os
instrumentos de trabalho se adiantou para defender sua causa. Mas não conseguiu
articular uma palavra. As lágrimas o sufocavam. (Tempo) Naquele
momento não me importei. Acho mesmo que me apressei a esquecer a cena. E certo
que estava ocupadíssimo com a construção da minha máquina aritmética... (Tempo)
com a intenção de facilitar para meu pai o cálculo dos impostos pelos
quais ele era o responsável.
DESCARTES:
Algumas pessoas a gente não vê.
PASCAL:
Algumas pessoas?
DESCARTES:
Aquelas que não pertencem à sociedade que ambos freqüentamos.
PASCAL:
Tem razão. Eu não vi aquele infeliz. Eu o revejo sem tê-lo visto. Que Deus me
perdoe.
DESCARTES:
Não se pode prestar atenção a tudo, principalmente quando se está ocupado, como
estava com o seu invento. O espírito só pode se concentrar num único assunto.
PASCAL:
Eu estava cego. Sem a graça divina, para onde vamos?... que vemos? Mas só Deus
a dispensa e nós, pobres pecadores, não podemos senão pedi-la.
DESCARTES:
Deus, então, decidiu antecipadamente a sua salvação?
PASCAL:
Ela é absolutamente determinada por decreto da onipotência divina. Sim, acho
que sim. Não acha?
DESCARTES:
Absolutamente, não acho.
PASCAL:
Não?
DESCARTES:
Não. Entendo que o cristão, em nome da fé, se descubra elevado pela razão, na
atividade terrestre, e não um brinquedo nas mãos do Criador. Deus me fez livre.
PASCAL:
E, no entanto, praticamos o mal, somos atraídos irresistivelmente pelo pecado.
Nossa natureza foi corrompida pelo erro de Adão. Nós só podemos fazer o bem se
o Senhor o permitir, e essa permissão apenas alguns podem aproveitar...
DESCARTES: (Cético): Sim...
PASCAL:
Não acredita?
DESCARTES:
Se compreendi bem, não se entra facilmente no Paraíso.
PASCAL:
E preciso receber a graça.
DESCARTES:
Que Deus economiza.
PASCAL:
E cabe a nós julgá-lo?
DESCARTES:
De maneira nenhuma. Não, de maneira nenhuma.
PASCAL:
Conhece Antoine Arnauld?
DESCARTES:
Não tenho essa honra, mas ele me enviou algumas objeções de pormenor a uma das
minhas obras, e aprecio bastante seu espírito.
PASCAL:
Não se imagina homem de melhor caráter.
DESCARTES:
Seguramente.
PASCAL:
E cristão mais fiel a seus deveres e a sua fé.
DESCARTES:
Não precisa me convencer: Antoine Arnauld tem toda a minha estima.
PASCAL:
Pois bem. Esse homem, que estima, tem a honra e a situação ameaçadas, e ouso
pedir-lhe que me apoie em sua defesa.
DESCARTES:
Ora. Ameaçado? Por quem? De quê? Que querem dele?
PASCAL:
Os Jesuítas acharam conveniente atacar o seu tratado "Da comunhão
freqüente". A apologia que ele fez de Jansênio, bispo de Ypres, excitou
ainda mais o furor deles. De sorte que ele está hoje a ponto de ser excluído da
Faculdade de Teologia e de ser censurado pela Sorbonne. Foi-me assegurado que a
sua prisão já foi ordenada e que a detenção é iminente. É, esse homem justo na
prisão!
DESCARTES:
Tudo isso é lamentável.
PASCAL:
Talvez ainda haja tempo de intervir. Talvez não seja tarde. O senhor me
ajudaria a salvar Antoine Arnauld?
DESCARTES:
Há alguma coisa que se possa fazer?
PASCAL:
Eu pensei que uma carta – uma carta assinada por nós dois, ainda que o meu nome
seja menos ilustre do que o seu -influenciaria a opinião das pessoas
interessadas neste caso.
DESCARTES:
Uma carta?
(Pascal
tira um papel do bolso)
PASCAL:
Tomei a liberdade de fazer um rascunho.
DESCARTES:
Calma, calma. Acabei de embarcar nessa disputa e sei apenas o que me disse. O
que não é suficiente para empenhar minha assinatura.
PASCAL:
Não há tempo para entrar em detalhes. Se demorarmos... Espero que confie em
mim.
DESCARTES:
Não me ponha a faca no peito. Ambos sabemos que as Escrituras recomendam
socorro a um inocente oprimido mas, no que toca à Teologia, a inocência não tem
uma natureza clara e eu não poderia, de minha parte, decidir rapidamente. Como
já disse, com tantas preocupações e viagens, coloco-me longe desse tipo de
discussão.
PASCAL:
Nesta, estão engajadas a verdade e a justiça – e a salvação de um bom cristão.
DESCARTES:
Não me explicou há pouco que a sua salvação estava inteiramente à mercê de
Deus?
PASCAL:
Sabe muito bem que eu falava da salvação da alma. O que está em causa é a
liberdade, a honra de um homem nesta vida. E sobre isso não devemos nos fazer
de surdos.
DESCARTES:
Arnauld merece toda a consideração, mas pode se enganar, de boa fé. Não quero
tomar seu partido sem conhecer o fundo do seu pensamento, e francamente, ele
pouco me interessa. Não costumo frequentar teólogos.
PASCAL:
Desprezaria seus estudos?
DESCARTES:
Acho inconsequente apelar para a razão enquanto ela pode servir à defesa de sua
tese e recusá-la, desde que a coloque em risco.
PASCAL (Baixo): Tenta-se
compreender e depois se chega ao mistério. E se renuncia a ele. Parece-me que,
neste sentido, cada um de nós é teólogo sem saber. Mas a questão não
é esta. No seu tratado " Da comunhão freqüente", que lhe valeu tantos
aborrecimentos, Arnauld examina a moral, que diz respeito a todos nós. Espero
que concorde comigo.
DESCARTES:
Não li "Da comunhão freqüente".
PASCAL:
O assunto é simples e lhe foi dado pela crônica da corte: comungando de
manhã, Madame de Sablé teria direito de ir dançar à noite?
DESCARTES:
Tanto barulho por isso?
PASCAL:
É que Madame de Sable, que hesitava em tomar uma decisão, teve permissão do seu
confessor para ir ao baile. (Tempo)Preciso acrescentar que seu confessor é
um Jesuíta.
DESCARTES:
E Arnauld, jansenista...
PASCAL:
Jansenista, sim. Quem não o seria nessas circunstâncias?
DESCARTES:
Não sei...
PASCAL:
Apoiaria, por acaso, a opinião do confessor?
DESCARTES:
Não, não chegaria a tanto, diria somente que é melhor não ir ao baile quando se
comungou de manhã e que uma proibição absoluta, caindo como uma espada, pode
parecer bastante severa... (Movimento de impaciência de Pascal) Mas, escute...
Madame de Sablé podia ter sido obrigada pela situação, ou pelo marido, a ir ao
baile, sem sentir a menor vontade. Deveria ela, com grandes ares, se acobertar na
religião para fugir a uma obrigação mundana que não lhe daria, talvez, nenhum
prazer? E se, mesmo que não tivesse visto com maus olhos essa obrigação, a
Santa Comunhão não poderia, fortificando-lhe a virtude, ajudá-la a encontrar no
baile apenas a alegria permitida a uma mulher honesta? Um Jesuíta talvez não
seja o único a pensar isso.
PASCAL:
Me disse que foi um de seus alunos...
DESCARTES:
Eles me ensinaram a não me fixar num só ponto de vista, no que concerne à vida.
PASCAL:
E no que concerne a Deus?
DESCARTES:
Deus está em nós. Cada um lhe empresta o seu rosto. Ainda que aceitemos as
diferenças dos nossos traços, estamos sempre prontos a nos matar porque não
vemos nem escutamos o mesmo Deus.
PASCAL:
Mas há as Escrituras e elas falam a todos na mesma língua.
(Tempo) Não posso segui-lo...
(Tempo) Não posso segui-lo...
DESCARTES:
Talvez lhe fizesse bem viajar...
PASCAL:
Viajar?
DESCARTES:
Lembro-me da desventura que me aconteceu, há muito tempo. Eu regressava pela Hungria,
a Boêmia e a Alemanha do Norte, de um giro pelo leste da Europa. Uma noite,
cheguei às margens do rio Elba, que eu devia atravessar para chegar à Frísia
ocidental, onde contava passar algum tempo. O barco estava lá e eu o aluguei
apesar dos marinheiros não me parecerem com boa cara. Era visível que eles me
tomavam mais por um mercador rico do que por um cavalheiro, e quando estávamos
no meio do rio eu os surpeendi tomando uma decisão a meu respeito. Ignoravam
que eu falasse sua língua e combinavam, livremente, me matar a pancadas e se
aproveitar dos meus despojos, depois de me jogarem na água. Então, de repente,
levantei, saquei da espada, encostei-a na garganta do chefe e ordenei, no
idioma dele, que me conduzisse ao meu destino. O que ele fez sem que nada mais
ousasse contra mim.
PASCAL:
Vejo que tem o braço tão ágil quanto o espírito.
DESCARTES:
Tão rápido que se o miserável tivesse se mexido eu lhe cortaria a garganta e o
expediria para o inferno. Teria eu o direito, diante de Deus? Mas se eu fraquejasse
era ele que me matava, e como nunca se tem certeza de viver em estado de graça,
eu teria assumido um enorme risco diante do Céu. Se me dissesse que eu deveria
ficar quieto no meu quarto em vez de me encontrar naquela noite de novembro às
margens do Elba, teria toda razão. Mas, enfim, eu tinha embarcado.
PASCAL:
Que está querendo me dizer?
DESCARTES:
Bem, que a teologia não pode responder a tudo, claramente. Que em certos
momentos a vida prevalece sobre a reflexão, e que é preciso saber decidir rapidamente
sem pesar demais os desígnios atribuídos a Deus. Falo tanto por Madame de
Sablé, como por mim. Nós dois já tínhamos embarcado. Ir ao baile ou ficar no
seu oratório... Transpassar meu futuro ladrão ou me deixar matar. Os teólogos
têm muito que debater sobre esse assunto.
PASCAL:
Se me permite, voltemos a Antoine Arnauld. Conhece suas ligações com
Port-Royal. Os religiosos que estão sob suas ordens têm toda sua confiança, e
se alguma mesquinharia viesse privá-los de sua orientação...
DESCARTES:
Que Deus o livre.
PASCAL:
Mas ele não vai livrá-lo se não fizermos nada em favor de Arnauld...
DESCARTES:
Vou lhe falar sem rodeios: como homem, Arnauld tem toda minha estima, já disse,
mas me empenhar por ele neste caso é dar meu aval a um partido...
PASCAL:
Um partido?
DESCARTES:
A palavra lhe parece forte? Toda novidade em matéria de religião cria um
partido. E, daí, uma divisão no Estado. Isso não ocorre sem perigo.
PASCAL:
Eu não lhe faria a afronta de pensar que teme por si mesmo...
DESCARTES:
Não seria uma afronta. Minha próxima partida me preserva de todo perigo.
Ninguém vai me procurar em Estocolmo. Não, não corro nenhum risco se puser
minha assinatura na sua carta. Ela faria boa figura, admitamos, e não me
custaria mais do que uma esmola. Mas nunca dei meu nome de esmola, e não
concordando, no fundo, com Arnauld, eu lhe faria uma injúria, separando sua
pessoa, que respeito, de sua religião, que reprovo.
PASCAL:
Argumentos, enquanto se persegue um inocente! A razão sempre prevalece sobre o
seu coração?
DESCARTES:
Neste caso, sim.
PASCAL:
Então, não tenho mais nada a dizer. Perdoe-me pela iniciativa...
DESCARTES (Cortando-o): Que
só o honra. (Pascal se retorce, de repente, na cadeira, leva a mão ao
peito, e vira a cabeça para trás. Preocupado, Descartes se levanta e dá um
passo em sua direção.) Que acontece?(Pascal faz sinal com a mão de que não
pode responder. Em silêncio, Descanes o observa. Finalmente, Pascal abre os
olhos.).
PASCAL:
Desculpe.
DESCARTES:
Quer que eu chame um médico?
PASCAL:
Ele nada pode fazer por mim. (Descartes vai fechar a veneziana, da janela) De
nós dois, sou o mais velho.
DESCARTES:
Parece sentir frio.
PASCAL:
Só a febre me aquece.
(Descartes
vem se sentar ao lado de Pascal.)
DESCARTES:
Se sofre do estômago, eu recomendo uma infusão de tabaco numa bebida quente.
PASCAL:
Duvido que faça efeito para a minha enxaqueca, que me deixa em paz apenas
algumas horas, à noite.
DESCARTES:
Lamento muito.
PASCAL:
Não lamente: o sofrimento me une a Jesus Cristo. Em mim, é o que mais amo.
(Descartes se levanta e vai acender a vela que se encontra sobre a lareira.)
(Descartes se levanta e vai acender a vela que se encontra sobre a lareira.)
DESCARTES:
Posso confessar que, de minha parte, prefiro ter saúde?
PASCAL:
Fique à vontade.
DESCARTES:
Não aprecia a saúde?
PASCAL:
Pode-se fazer bom uso dela.
DESCARTES:
A minha me permitiu seguir a natureza e amar plenamente a vida.
PASCAL:
Estou com frio.
DESCARTES:
Quer um coberto?
PASCAL:
Não seria o bastante. Na minha casa, tenho chinelos embebidos em álcool para
esquentar os pés, porque não posso nem mesmo caminhar. (Tempo)Mas esqueçamos
meu corpo. Isso não é assunto de conversa.(Tempo. Ele mostra a espada, que está
no canto.) Uma espada, numa cela?
DESCARTES:
Serviu-me muito pouco.
PASCAL:
No entanto, foi soldado...
DESCARTES:
Um soldado espectador, mais preocupado em observar as trocas de golpes do que
em dá-los.
PASCAL:
Me contaram que se bateu em duelo, uma vez...
DESCARTES:
Há muitos anos. Desarmei meu adversário e lhe dei a graça da vida com a
condição de que fosse ver – sem a espada – a dama por quem se batera. (Tempo) Escrevi
um tratado de esgrima ao sair do colégio.
PASCAL:
Alguma coisa em mim o inveja.
DESCARTES:
O que me lisonjeia.
PASCAL:
É, invejo a sua indiferença. Seria preciso aceitar o pensamento da morte. Ainda
não consigo. Se minha alma não a temesse, meu corpo, talvez, fosse menos
doente.
DESCARTES:
E se amasse um pouco mais o seu corpo, se fosse com ele menos severo? Pode ser,
então, que sua alma...
PASCAL:
Não tenho nenhum desejo de me interessar pelo meu corpo.
DESCARTES:
Então, eu não disse nada. (Tempo) Sua religião é terrível!
PASCAL:
Exigente com os que a praticam, sim, reconheço. Mas eles são os mais inocentes,
as melhores pessoas do mundo. Rezam, estudam, praticam o bem. Com que se ofusca
o poder? E, no entanto, sua cólera cai sobre eles.
DESCARTES:
Talvez tenha suas razões.
PASCAL:
Se o poder está contra Port-Royal, é por causa dos Jesuítas – e sabe-se do que
é capaz um Jesuíta. Vou escrever sobre isso. Serei talvez o único, mas vou
escrever, esteja certo.
DESCARTES:
Teremos uma bela obra, seguramente. Não demore a empreendê-la. Servirá, com
certeza, aos interesses dos seus amigos. (Tempo) Ontem, eu passeava
pelo Pont-Neuf – eu já disse, creio, que gosto de flanar –, quando um pobre
homem me abordou para me pedir, humildemente, uma esmola. Estava tão
miseravelmente vestido que o reconheci apenas depois de um bom tempo.
Entretanto, há alguns anos esse homem me salvou a vida. Era inverno – um
inverno rigoroso – e eu viajava pelo norte da França, na Picardia, quando, uma
noite, no canto de um pequeno bosque, meu cavalo caiu no gelo, e eu fiquei
embaixo dele, a perna presa, aturdido com a queda, e tão fraco, que senti a
morte chegar com o frio, sem forças para pedir socorro. Então perdi os
sentidos. Ao voltar a mim, estava numa cabana, estendido sobre palhas, e o
homem que me tinha salvo me olhava com um sorriso, à luz do fogo que ele havia
aceso. Eu tinha febre e prestava pouca atenção às palavras que ele me dirigia,
até o amanhecer. (Tempo) Um grande conversador esse pobre homem, e um
simples de espírito, pois enquanto me curava se propunha seriamente me explicar
os mistérios da Trindade, da natureza humana de Jesus e não sei mais o quê. Ah,
sim, me lembro: ele pretendia saber a composição do leite da Virgem.(Pascal se
levanta bruscamente e olha Descartes fixamente) Não preciso mencionar que
não dei nenhuma importância àquelas bobagens. Em compensação, nunca esqueci a
bondade daquele homem, e todo o cuidado que teve comigo naquela noite de
inverno.
PASCAL: (Num
sopro): Frei Santo Ângelo...
DESCARTES:
Exatamente. Creio que o conhece. Frei Santo Ângelo, um capuchino. Jacques
Forton era seu nome verdadeiro.
PASCAL:
Ele contou que...
DESCARTES:
Contou que há alguns meses um jovem, muito piedoso, tinha vindo vê-lo para que
lhe explicasse em detalhes sua compreensão dos mistérios. Em seguida, o jovem o
denunciou, com documentos de prova, como herege, ao arcebispo de Ruão. Ele foi,
então, obrigado a largar a batina e a fugir para longe da província onde
passava a vida a socorrer os pobres. E foi assim que ele se tornou mendigo no
Pont-Neuf, onde o encontrei.
PASCAL: (Baixo) Eu
nunca quis isso.
DESCARTES:
Mas, no entanto, o denunciou.
PASCAL:
Podia-se aceitar que ele espalhasse pelos campos...
PASCAL:
Ora, de todas as pessoas a quem ele assistia e que conheciam suas histórias,
talvez tenha sido o único a levar a sério suas bobagens. Em contrapartida, ele
fazia caridade – a mesma que ele pede agora. Duvido que a religião tenha ganho
nesta questão.
PASCAL:
Um Capuchino é um homem de Deus. Frei Santo Ângelo, com sua batina, exercia
autoridade sobre as almas. Ele era responsável.
DESCARTES:
Diante do Céu.
PASCAL:
E diante da religião.
DESCARTES:
Não acho que ele a colocasse em grande perigo.
PASCAL:
Não se pode tocar nos mistérios e pretender explicá-los.
DESCARTES:
Havia suas palavras – que não importavam a ninguém – mas havia sua bondade, sua
alegria e sua inocência. Que ajudaram a muitos. Reencontrei um homem amargo e
que não compreende o abandono do céu. Que podia eu dizer a ele? (Tempo) Não
creio que você tenha feito bem.
(Pascal se senta, de novo, lentamente)
(Pascal se senta, de novo, lentamente)
PASCAL:
Não sei mais. Pensei estar com a verdade, mas agora não sei mais. A verdade de
Deus não era, talvez neste caso, a minha.
DESCARTES:
Agiu sozinho?
PASCAL:
Sim... Enfim, não. Amigos me encorajaram. Acreditavam, como eu, nos mistérios,
e no respeito que os cristãos lhes devem. Agimos para salvaguardá-los.
DESCARTES:
São sem dúvida esses amigos os responsáveis pelo fato de ter se dado a Deus,
segundo um novo caminho.
PASCAL:
Esses amigos são adeptos de Jansênio, bispo de Ypres. Não era isso o que queria
que eu contasse?
DESCARTES:
Bem, acho que seus amigos nunca serão os meus.
PASCAL:
Não é o único a não gostar deles. Tem a seu lado o poder, a Sorbonne e a
Companhia de Jesus. São os poderosos aliados, e aposto que logo a tempestade
vai cair sobre o vaie de Port-Royal.
DESCARTES:
Não pense que me alegro com isso. Não é do meu feitio ficar contente vendo
pessoas sofrerem por suas convicções. Cada um deveria pensar à vontade e
dize-lo à sua maneira e sem medo.
PASCAL:
Os jansenistas não precisam dessa esmola.
DESCARTES:
Esmola?
PASCAL:
Eles não querem dever a vida a essa espécie de acomodação que esta pregando,
mas à verdade – a verdade divina.
DESCARTES:
E, por acaso, é dela detentor?
PASCAL:
Está nas Santas Escrituras. Me foi suficiente procurá-la.
DESCARTES:
Encontra-se o que se quer nas escrituras.
PASCAL:
Quer dizer que eu teria posto, de propósito, o que não estava lá? E isso que
pensa?
DESCARTES:
Não foi o que eu disse.
PASCAL:
Disse, sem de fato dizer.
DESCARTES:
Não se esquente e admita que o poder...
PASCAL:
Tomaria seu partido nesse caso?
DESCARTES:
Não duvido um instante que os senhores de Port-Royal sejam os melhores homens e
os mais aptos a ocupar uma posição no Estado. Mas que fazem eles? Sob o
pretexto de que o mundo é fundamentalmente mau, irreformável, eles se retiram
para o deserto a fim de respirar ares menos corrompidos... e de se preservar
das tentações entre santas pessoas.
PASCAL:
Para encontrar a salvação.
DESCARTES:
É exatamente o que eu dizia. Acha que o príncipe pode suportar por muito tempo
que homens, para os quais ele fez planos, se esquivem assim aos cargos com que
pretendia dignificá-los, a fim de trabalhar para a prosperidade e a grandeza do
reino?
PASCAL:
É o rei que faz esta vida aceitável? Tem ele o poder de nos preservar da morte,
do mal, da danação? Por melhor príncipe que seja, seu reino está vinculado ao
pecado original, e não seria uma loucura encontrar uma razão neste mundo?
DESCARTES:
É preciso viver aqui – e o melhor que se pode.
PASCAL:
Sim, o tempo de nos preparar para a verdadeira vida que nos espera além das
ilusões e das tristezas de que somos prisioneiros. (Tempo)
DESCARTES:
Dir-se-ia que, para você, dar à criatura é retirar do Criador.
PASCAL:
O Criador nos fez para ele e sem ele nada podemos.
DESCARTES:
Nós podemos não nos odiar, como você gostaria que fizéssemos. E preciso nos
amarmos um pouco, me parece, se queremos amar. E você não se cansa de lutar
consigo mesmo e de cuspir no próprio rosto.
PASCAL:
Eu apenas amo Cristo em mim.
DESCARTES:
Ama-o dilacerando-se, imolando sua razão e sua liberdade. Não o ama senão
provocando medo em si mesmo. Estranho amor.
PASCAL: (Baixo) Eu
não admito minha condição humana.
DESCARTES:
É isso, não a admite.
PASCAL:
Ah, se eu não tivesse a esperança... (Tempo) Quando alguém, se
viu, durante noites seguidas, se transformar em seu próprio cadáver? Quando se
respirou seu próprio fedor? Quando se tocou sua própria lama?
DESCARTES:
Pare de deleitar-se com o seu enterro. Não se pode passar o tempo a esmiuçar a
fraqueza e a gemer sobre sua imagem. A despeito do que pensa, não sou mais
forte e não vou lhe dar minha coragem como exemplo. Sou prudente... E quando
digo prudente... Sabe que passei três anos trabalhando numa obra onde sustentei
a opinião de Copérnico relativa ao movimento da Terra em torno do Sol? Ora,
assim que eu soube da condenação de Galileu por ter sustentado a mesma tese,
renunciei a publicar meu livro. No entanto, como ele, estou seguro que a Terra
gira em torno do Sol. Mas preferi não dizer esta verdade porque podia ser, para
mim, uma fonte de aborrecimentos.
PASCAL:
Eu não o sabia tão preocupado em estar de acordo com a Igreja.
DESCARTES:
Ela é poderosa e desconfiada... e eu não sou corajoso todos os dias.
DESCARTES: (Se
levanta e é imitado por Pascal) Não temos mais muito tempo. Preciso me
preparar para a partida, e seria deplorável que nos deixássemos sem nos dizer
nada. Haveria, acho, coisa melhor para fazer.(Descartes convida Pascal a se
sentar, de novo, depois vai pegar, sobre a lareira, um maço de folhas que põe
sobre a mesa) Se há alguém que possa tratar disso que comecei, é você.
Ninguém mais. De todos os homens desta época. Sei que não faz grande caso da
sua inteligência e que se empenha, a todo custo, em tentar diminuí-la. Mas é à
sua inteligência que faço um apelo. Ela pode tomar o lugar da minha e levá-lo
onde eu não terei, sem dúvida, tempo para chegar. (Tempo) Não me
basta acreditar: eu quero saber. Isso seria pecado a seus olhos?
PASCAL: (Baixo
e num tom patético) Sou de uma ignorância terrível e a parte de mim que
pensa o que digo, não se conhece mais do que o resto. Vejo apenas infinitos que
me fecham como num átomo e de mim sei apenas que sou aqui uma sombra sem
retorno e de pouca duração.
DESCARTES:
Um homem do seu mérito, da sua qualidade, não deveria aplicar todo o gênio a
serviço do pavor. Vou mais longe: me perguntei, algumas vezes, ouvindo-o falar,
se não havia um sistema na sua desolação, e eu o veria de bom grado, desde que
se pusesse a filosofar, a retomar contente o fio dos seus gemidos.
PASCAL: (Levantando-se): Se
me vê dessa maneira é que eu não soube me fazer conhecer. Meu talento tem
limite: não posso ultrapassá-lo. Nós não nos pertencemos e não somos daqui.
DESCARTES:
Nossa inteligência nos pertence. O Criador nos deu o dom de administrá-la. Pela
última vez, apelo para o seu espírito. Use-o. Aplique-o nas ciências em vez de
lutar contra ele.
PASCAL:
Esse dom me fez tocar o fundo da minha ignorância.
DESCARTES:
E, no entanto, sabe que o universo é função da medida e do número. Espaço e
tempo que são ligados... sim, ligados no movimento. E que se pode calcular o
movimento.
PASCAL:
Sim.
DESCARTES:
Aceitaria trabalhar a partir dessa afirmação?
PASCAL:
A que eu chegaria? A uma equação? Não me faça rir.
DESCARTES:
A uma equação, efetivamente. A uma equação onde viriam se esclarecer,
fundamentando-se, todas as leis do universo. Isso nada seria?
PASCAL:
O que aspiro está acima da matemática. (Tempo) É tarde. Tomei
demais seu tempo e o decepcionei. Perdoe-me. Não compreendo mais a linguagem
dos números e preciso de uma resposta.
DESCARTES:
Precisa sobretudo procurá-la, e procurá-la sofrendo!
PASCAL: Sofrer me conduz para onde vou.
PASCAL: Sofrer me conduz para onde vou.
DESCARTES:
Prefiro encontrar alegrEmente – ou, pelo menos, tentar.
(Descartes vai até Pascal e aperta sua mão) Adeus. Não nos podíamos dar nada, mas não vou esquecê-lo.
(Descartes vai até Pascal e aperta sua mão) Adeus. Não nos podíamos dar nada, mas não vou esquecê-lo.
PASCAL:
Talvez a gente se encontre.
DESCARTES:
Aqui, eu duvido. Faz muito frio no país da rainha das neves.
(Depois de uma hesitação, Pascal sai. Tempo. Descartes levanta lentamente a vela, à altura do rosto, e a apaga. Cortina.)
(Depois de uma hesitação, Pascal sai. Tempo. Descartes levanta lentamente a vela, à altura do rosto, e a apaga. Cortina.)
*Jean-Chaude
Brisville é dramaturgo francês; compôs: Saint-Just (1957), Le
Rôdeur (1972), Le Fauteuil à Bascule(1982) e Le Bonheur à
romorantin (1983). Este Entretitn de M. Descartes avec M. Pascal le
Jeune foi estreado no Petet Odéon em 22.10.85, sob a direção de Giorgio
Strehler.
Tradução de Edla van Steen.
Tradução de Edla van Steen.
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