Segundo Discurso**
É bom, senhor, que saibais o que se vos deve a fim de que não pretendais exigir dos homens o que não vos é devido; pois isso é uma injustiça visível: e contudo ela é muito comum àqueles de vossa condição, porque desta eles ignoram a natureza.
Há no mundo dois tipos de grandezas; pois há grandezas
de estabelecimento e grandezas naturais. As grandezas de estabelecimento dependem da vontade
dos homens que acreditaram com razão dever honrar alguns estados e a eles
atribuir alguns respeitos. A dignidade e a nobreza são desse gênero. Em um país
são honrados os nobres, noutro os plebeus; neste aqui os primogênitos, naquele
outros os caçulas. Por que isto? Porque aprouve aos homens. A coisa era
diferente antes do estabelecimento; após o estabelecimento ela se torna justa,
porque é injusto perturbá-la.
As grandezas naturais são as que são independentes da
fantasia dos homens, porque elas consistem nas qualidades reais e efetivas da
alma e do corpo, qualidades que tornam uma ou outro mais estimável, como as
ciências, a luz do espírito, a virtude, a saúde, a força.
Devemos
alguma coisa a uma e a outra dessas grandezas; mas como são de uma natureza
diferente, devemo-lhes também diferentes respeitos.
Às grandezas de estabelecimento, devemo-lhes respeitos
de estabelecimentos, isto é, algumas cerimônias exteriores que devem ser, não
obstante, acompanhadas, segundo a razão, de um reconhecimento interior da
justiça dessa ordem, mas que não nos fazem conceber alguma qualidade real
naqueles que honramos desse modo. É
preciso falar aos reis de joelhos; é preciso manter-se em pé no quarto dos
príncipes. É
somente uma tolice e uma baixeza de espírito recusar-lhes esses deveres.
Mas para os respeitos naturais, que consistem na
estima, nós os devemos somente às grandezas naturais; e devemos, ao contrário,
o desprezo e a aversão às qualidades contrárias a essas grandezas naturais. Não é necessário, porque sois duque, que
eu vos estime; mas é necessário que eu vos saúde. Se sois duque e honnête
homme,[1]
farei o que devo a uma e a outra dessas qualidades. Não vos recusarei absolutamente as cerimônias que
vossa condição de duque merece, nem a estima que merece a de honnête homme. Mas se fôsseis duque sem ser
honnête homme, eu vos faria ainda justiça; pois vos cumprindo os respeitos
exteriores que a ordem dos homens atribuiu a vosso nascimento, não deixaria de
ter por vós o desprezo interior que mereceria a baixeza de vosso espírito.
Eis em que consiste a justiça desses deveres. E a injustiça consiste em atribuir os
respeitos naturais às grandezas de estabelecimento ou em exigir os respeitos de
estabelecimento para as grandezas naturais. M. N... é um maior geômetra que eu;
nessa qualidade ele quer me preceder: eu lhe direi que disso não entende nada.
A geometria é uma grandeza natural; ela requer uma preferência de estima; mas
os homens não lhe atribuíram nenhuma preferência exterior. Passar-lhe-ei, portanto,
adiante; e o estimarei mais que eu, na qualidade de geômetra.[2]
Do mesmo modo se, sendo duque e igual, vós não vos contentásseis que eu me
mantenha às claras diante de vós, e que quisésseis ainda que eu vos estimasse,
eu vos pediria mostrar-me as qualidades que merecem minha estima. Se o fizésseis, ela vos seria adquirida,
e eu não vos a poderia recusar com justiça; mas se não o fizésseis, seríeis
injusto ao ma solicitar, e seguramente não a teríeis alcançado, fósseis o maior
príncipe do mundo.
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[1] Honnête homme: o
equivalente, no francês do século 17, ao nosso “homem de bem”; é a influência,
sobre a idade clássica, do spoudaíos ou do andrós agathoû aristotélicos. Em
outras palavras, é o indivíduo socialmente considerado bom e virtuoso.
[2]
Isto é, sendo M. N. maior geômetra que eu, posso anteceder-me a ele,
exteriormente, em honras exteriores; porém, reconhecendo-o como maior geômetra,
devo reconhecer esta sua qualidade natural à qual devo estima. O contrário
disso seria injustiça.
Nota:
**De acordo com Antônio G. Da Silva, "o segundo discurso adverte contra o defeito de se considerar senhor de tudo e acima de todos. pouco importando as qualidades e virtudes que devem honrar a pessoa de todo o governante, ao exigir o respeito e a submissão dos outros, o dignitário deve cultivar o respeito que deve a seus semelhantes e subalternos". Já para Henrique Barrilaro Ruas, "dá-se a separação implacável entre o que vem de Deus e o que é obra do homem: o que Deus nos dá, e merece portanto o respeito dos outros; o que a sociedade nos atribui, e apenas implica um respeito conencional. De novo, a perfeita dicotomia. Como se nenhum significado tivesse que a sociedade fosse, afinal, obra de Deus".
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Referências
SILVA, Antônio G. da. Pascal: Cientista
e Filósofo Místico. – São Paulo: Lafonte, 2012.151p. (Coleção pensamentos &
vida; v, 9).
PASCAL, Blaise. Pensamentos sobre
política: Três discursos sobre a condição dos poderosos. Textos escolhidos
e apresentados por André Comte Sponville; tradução Paulo Neves. – São Paulo:
Martins Fontes, 1994.104p – (Coleção Clássicos).
PASCAL, Blaise. Três discursos
sobre a Condição dos grandes; apresentação e tradução e notas de João Emiliano
Fortaleza de Aquino. Revista de Filosofia do mestrado acadêmico em filosofia da
UECE.- Fortaleza, v. 2 n. 4, Verão de 2005, p 201, 214.
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