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terça-feira, 4 de novembro de 2014

UMA LEITURA ATUAL SOBRE CONSTRUÇÃO POLÍTICA E SOCIAL NA FILOSOFIA DE BLAISE PASCAL



Texto apresentado no Simpósio Luso-Brasileiro. Religião, Política, Laicidade: Desafios Contemporâneos, na PUC-SP, 03 à 05/11/14.

Arlindo Nascimento Rocha[1]

Analisando as grandes transformações, principalmente aquelas que tornaram o marco da civilização ocidental, como seria possível não duvidar de certos discursos que almejam colocar a razão, como verdade última e julgadora absoluta de toda e qualquer ordem de conhecimento como queriam os modernos? Segundo Blaise Pascal na sua obra póstuma Pensamentos “O último passo da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam”.  

Blaise Pascal, considerado um dos maiores pensadores da França do sec. XVII, tendo dedicado alguns fragmentos ao poder, à justiça e a força dispersas na obra referida, sem ordem e por vezes esquecidos, perdendo assim, a força e a coerência. Para amenizar esse problema, Sponville, resolveu reunir a partir da edição de Brunchvicg, os pensamentos políticos de Pascal, na obra intitulada “Pascal - Pensamentos Sobre Política”.

No final da obra, ele acrescenta ainda, os Três discursos Sobre a Condição dos Grandes, redigido por Pierre Nicole que os anotou e publicou, cerca de dez anos mais tarde (1670), em seu Traité de l’éducation d’un prince, sob o título Discours de feu M. Paschal sur la condition des Grands. Suas palavras pronunciadas em diferentes ocasiões, teriam como destinatário um filho da nobreza, certamente, o filho mais velho do duque de Luynes.    

A reflexão política de Pascal incide sobre aquilo que os homens não deixam de se apresentar no espaço social, ou seja, signos exteriores de respeitabilidade que, em grande quantidade os magistrados ostentam.

Todos conhecem os fragmentos famosos e sublimes sobre os dois infinitos, a aposta, miséria e grandeza, razão e coração, o divertimento e angustia... Mas o que se sabe sobre a tirania? A propriedade? As leis? A escolha dos governantes? Sobre as pompas necessárias e mentirosas do poder? Léon Brunschvicg, em sua edição dos pensamentos, chegou a agrupar esses fragmentos políticos em sua seção V, sob o titulo pascaliano de Razão dos efeitos. Mas, os editores mais recentes, quase todos abandonaram esse agrupamento. O único a empreender um novo reagrupamento temático foi o Francis Kaplan que não privilegiou o bastante o pensamento propriamente politico.

Mesmo assim, Blaise Pascal, é considerado por muitos como sendo um extraordinário teórico da política, mas desconhecido, e que se arriscava, apesar dos avanços da sua erudição a permanecer assim por muito tempo, quando seu pensamento é talvez o mais atual e necessário em nossa época, por ser mais lúcido, mais desiludido, mais desesperado quando chamado a interpretar os signos sociais exteriores pelos quais a virtude da força, justiça e do poder se mostram ou são vazios de significados. 

Numa entrevista a Revista CULT o filósofo, Luiz Filipe Pondé, assegura que: “a obra de Pascal ainda está em processo de reconhecimento. É uma obra difícil e pouco trabalhada no Brasil. [...]. Seu pessimismo antropológico é que afasta muita gente dele e não sua matemática. Sua teologia dura e “anti-humanista”, pouco simpática ao humanismo hedonista de nossa época, tende a assustar as pessoas. Todavia, qualquer pessoa que gosta de pensar a condição humana a sério em Pascal tende a trabalhá-lo. A descrença no ser humano, com o ceticismo político, críticas da democracia [...] crítica ao hedonismo materialista e a cultura da auto-estima” [...]

O extraordinário em Pascal é talvez o seu ceticismo, quando se refere o estado da atual da condição humana. Ele faz uma descrição do homem antes e depois da queda, no qual Deus abandona o homem e este passa a ter uma capacidade de amor infinito, direcionando todo o amor si mesmo e às criaturas.

Pascal elabora uma antropologia da insuficiência e como não poderia deixar de ser nesse domínio e em outros, ele não crê em nada: nem na justiça, nem nas leis, nem na tradição, nem no progresso. Ele só acreditava em Deus. O resto lhe parecia sob à luz impiedosa e desprovido de qualquer justificação e legitimação absoluta no que se refere ao homem, o que lhe valeu o título de mestre da descrença. Segundo ele, só a fatos, e os fatos nada fundamentam. Ao contrário de Galileu, Pascal afirma que o mundo não é um livro, do qual as matemáticas seriam a língua. Assim, para Pascal, o mundo não nos diz nada, ou seja, nada tem a dizer, e tal é o sentido do fragmento dos pensamentos: “O silêncio eterno desses espaços me apavora”. Dai a física ser incapaz de encontrar Deus, ou mesmo busca-lo, razão pelo qual, Descartes é “inútil” e incerto. 

Porém, é preciso frisar que, jamais Pascal recusou totalmente o conhecimento racional, mas insiste rigorosamente nos seus limites. Para ele, ambos os filósofos Platão e Aristóteles se enganaram, uma vez que, não há nem mundo inteligível nem natureza finalizada. Há somente um mundo, há somente um universo infinito e seu silêncio eterno [...]  

Para pascal, é preciso renunciar a viver conforme a natureza, como diziam os antigos, e especialmente se tratando da politica, ou seja, renunciar a toda ideia de um direito natural. No frag. 304 o nosso autor descreve a formação do Estado como um processo natural de dominação no qual a força desempenha o papel principal.

A única lei que vigora nessa disputa é a do mais forte. Ao contrário dos contratualistas, Hobbes, Locke e Rousseau, que celebram um contrato para por fim a guerra, dispondo, à partir daí, da garantia e segurança da propriedade através das leis instituídas e tendo como regulador dos eventuais conflitos a figura do soberano.

Pascal, é contrário de um utópico, conhece bem os homens para depositar neles qualquer esperança. Seu anti-humanismo leva-o a afirmar, que, crer no homem seria pecar contra Deus, daí essa “violência desesperada” como diz Maritain, que Pascal emprega para “desnudar” a realidade para tudo julgar como fato, não conforme o direito.  

Portanto, quando se trata de política, para Pascal, não há nem justiça natural, nem verdadeiro bem, nem poder realmente legítimo. Certamente existem leis naturais, mas essa bela razão corrompida tudo corrompeu (fr. 76), restando o fato da força e das relações de força, ou seja, na política, a disputa é entre o poder e a luta pelo poder.

O mundo da força, portanto, está longe de se reduzir às forças físicas: o poder é o jogo de forças, sobretudo imaginárias ou simbólicas. A imaginação começa a desempenhar seu papel depois que a força estabeleceu seu império.

Portanto, a força é que é primordial e continua sendo, mas, as vezes esquecemos disso, ludibriados que somos pelos símbolos ou pelo hábito, e nada seria sem ela. Existe apenas força, da qual opinião faz parte e se origina. É a própria política, não se trata de ter razão, mas ser mais forte, isto é, mais numeroso.

Não existe melhor regime possível, não há sociedade ideal, mas nem todos os males se equivalem, aliás, sabe-se que Pascal por mais obediente às leis que fosse, não se privou de seu direito a crítica. Para ele, a política não é tudo, a moral também tem suas exigências, escarneando do poder assim como o poder escarnece da moral. Ante uma lei iniqua, alguém pode ser condenável, moralmente, por resignar-se a ela ou por obedecer-lhe. A moral não pode se reduzir a política como tão pouco a política à moral. O que pode a virtude contra a força? O que vale a força contra a virtude? Pascal considera apenas a força e o efeito que dela deriva, e, não podendo assim fazer que o justo fosse forte, se faz com que o forte fosse justo.

Pascal é o filósofo que separa as ordens, e por isso, sua filosofia é trágica. Esse trágico é do homem, esse trágico é o próprio homem. Em política, ele se interessa por aquilo que é, não pelo que deve ser, e por isso, descreve a metáfora das três ordens que representam três movimentos que se dirigem cada um a um objeto diferente ou a um modo diferente de considerar o mesmo objeto da parte da vontade.

Segundo Pondé (2001 p. 30), percebe-se que a relação estreita entre a divisão das ordens e o tema das três concupiscências básicas: a concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e orgulho.Segundo Pascal, a ordem da política é a ordem da carne “os carnais são os ricos, os reis: eles têm por objeto o corpo”. As três ordens são distintas e opostas com frequência. Que sejam hierarquizadas é uma evidência. Mas, essa hierarquia é sem eficácia, uma vez que, por mais que sejam hierarquizadas permanecem distintas e independentes umas das outras.

A politica não basta, e nem pode bastar, e, muito menos o conhecimento. O apolitismo não é mais do que uma tirania invertida, que faz o jogo de todas, quem quer fazer o anjo faz a besta. Contudo, a ordem política e jurídica constitui certamente “uma regra admirável” punindo o crime, a violência e a violação de qualquer ordem.

Assim, no frag 298, p. 113 dos Pensamentos, “Justiça e força”, Blaise Pascal, sintetiza com genialidade os limites da justiça e poder. Assim, transcrevemos conceitos tão necessários no nosso mundo político, onde a possibilidade do renascimento dos totalitarismos é sempre uma ameaça.

A interpretação dos signos sociais deve estabelecer se remetem a qualidades reais ou se não são mais do que signos vazios. O fato das pessoas imaginarem que são fortes por estabelecimento ou por natureza não muda nada como se deve respeitar, o que muda, em contrapartida, é o modo de estabelecimento. Como Hobbes (1588-1679), Pascal descreve um estado de natureza caraterizado por uma guerra permanente e total de todos contra todos, uma vez que os homens se odeiam naturalmente.

Os homens só saem desse estado graças à instituição de signos que substituem a força como qualidade real. A interpretação dos signos sociais permitem distinguir radicalmente aqueles naturais pertencentes à ordem da carne e as pertencentes a ordem do espírito. Estes últimos tem absoluta necessidade de apoio da força.

A definição em ordens permite definir noções políticas tradicionais de maneira específica. Mas seu interesse consiste no fato de que ela fundamenta a visão da politica e da sociedade. Como já vimos, Pascal divide as coisas em três ordens: corpo, espírito e caridade. As duas primeiras pertencem à categoria geral da concupiscência, pois estão sob a ação da vontade ferida pelo pecado original, mas a caridade constitui uma ordem intimamente diferente: é apenas quando a vontade está curada de seu pecado que ela pode orientar-se para as coisas segundo a caridade. Entretanto, de uma a outra, há uma relação de figuração, sendo o reino da concupiscência uma figura do reino da caridade. E a grandeza do homem reside na sua capacidade de extrair da concupiscência a figura da caridade.

Pode-se, a partir dessa figuração tirar a conclusão de uma justiça parcial da ordem da sociedade? Para responder a essa pergunta, deve-se ler os Três Discursos Sobre a Condição dos Grandes, especialmente o terceiro dos discursos. Três discursos breves, simples, mas de uma riqueza extraordinária que revelaram Pascal na veste de um sociólogo e político um cidadão integrado na sociedade de sua.

Esses discursos, segundo Aquino (2005) foram pronunciados por Blaise Pascal, em seu leito, possivelmente no final de 1660, a seu amigo Pierre Nicole, que os anotou e os publicou. Um dos últimos esforços reflexivos de Pascal, que iria morrer em 1662. Esses discursos retomam, de modo sistemático, embora menos ousado conceitualmente, os fragmentos classificados sob o título “Razões dos efeitos” nos Pensamentos. Trata-se, portanto, de uma reflexão em torno do político.

Neste discurso Pascal retoma, de forma concisa e, às vezes, elíptica as três dimensões de seu pensamento, que seguem da divisão do texto em três discursos. Os três tratam da grandeza, da dignidade do cargo exercido. Em primeiro lugar, está a reflexão sobre a condição humana que ocupa a maior parte dos maços que iriam compor sua Apologia da religião cristã. Adverte e previne contra o defeito de se desconhecer a si próprio e de imaginar que todos os bens que usufrui um homem que reveste altas dignidades lhe sejam devido por sua posição e façam parte dele como se fossem direitos de nascença.

Em segundo lugar, encontra-se a concepção pascaliana da segunda natureza, cuja origem são os conceitos teológicos de pecado original e queda, em que o homem se encontra em seu estado de decaimento após o pecado original. A existência humana se constitui como “hábito”, “costume”, e não como “nature vraie”. Pascal adverte contra o defeito de se considerar senhor de tudo e acima de todos, pouco importando as qualidades e virtudes que devem honrar a pessoa de todo o governante. Ao exigir respeito e a submissão dos outros, o dignitário deve cultivar o respeito que deve a seus semelhantes e subalternos. Nesse ponto, está à concepção pascaliana de segunda natureza embasa a crítica das noções de lei natural e direito natural; constitui sua distinção entre grandezas de estabelecimento e grandezas naturais. É importante assinalar que Pascal na sua apologética considera unicamente as grandezas naturais, ou seja, qualidades que independem de qualquer instituição externa. Observa-se claramente que aqui Pascal mantém “em segredo” de que todo o estabelecimento legal nasce da força e, pela ação da imaginação do povo como elemento de legitimação da lei que lhe é inerente.

Em terceiro lugar admoesta o dignitário a não se deixar levar pela licenciosidade e pelas oportunidades que tem de satisfazer a todas as suas inclinações por causa de sua posição e de seus bens, esquecendo de que sua grandeza deve estar a serviço dos outros e não a serviço de seus próprios caprichos e desregramentos, levando ao desprezo e abandono daqueles que lhe são submissos. De modo sucinto, Pascal concebe o desenvolvimento positivo das concupiscências, das necessidades e dos desejos humanos como “qualidades naturais”. Esta concepção assentada no respeito ou estima pelas qualidades distintivas dos indivíduos.

Com o propósito de contextualizar o pensamento politico de Pascal atualmente, coloca-se a seguinte questão: o que tal pensamento é capaz de oferecer aos democratas? Talvez um pouco de lucidez acerca deles próprios e da democracia. Os democratas devem defender a democracia contra os tiranos, ou seja, contra quem pretende impor. Mas o ridículo ameaça também a democracia por dentro. Uma tirania democrática não é algo contraditório: no dia em que votarmos para saber o que é verdadeiro ou o que é o bem, será fim da liberdade do espírito.

Com certeza o pensamento político de Pascal é muito atual e nos auxilia na compreensão da sociedade em que vivemos. Ele é muito conhecido pelo seu pensamento um tanto quanto trágico e podemos dizer até um pouco pessimista em relação à antropologia e ao estado em que o ser humano se encontra. Para ele, a sociedade humana nada mais é que uma organização das forças da luxúria de uma forma tão pouco prejudicial, e tão benéfica quanto possível. 

A inquietação Política moderna traz à tona a atualidade do pensamento pascaliano e marca profundamente a visão de mundo. As questões levantadas em seu “ceticismo”, dos últimos séculos que refluía a confiança no ser humano na busca de controlar a natureza, ao mesmo tempo em que “rien est vrai, tout est permi”, mostram sua faceta atualíssima, na medida em que corriqueiramente acreditamos numa sociedade mais justa e igualitária baseado em princípios democráticos.

Para Pascal, a sociedade mostra-se como o reino da força pura, por isso, tentar tornar mais justa a sociedade é a última e a mais perigosa das ilusões. Sociedade essa, que segundo Pondé (2014) é disjuntiva (conflituosa, contraditória, sem nenhuma cura possível), gerando conflitos contínuos dentro da estrutura, causando problemas intermináveis a serem administradas por instâncias responsáveis pela vida social e política.  Ele concebe a ordem civil como uma ordem da concupiscência, isto é, uma ordem que é produzida e regulada pela concupiscência.

Pascal observa que as leis civis devem ser respeitadas não porque eles têm uma justiça fundamental, mas porque são leis: sua vantagem é que, uma vez tendo sido estabelecidas pela força, eles limitam os distúrbios, sedição e derramamento de sangue, o que os torna legítimo. Porém, ele não nega que, às vezes é necessário como acontece atualmente, protestar contra certos abusos do poder, conduta abusiva, uso de bens ou serviços em virtude do exercício de cargo público que tenha potencialidade para gerar desequilíbrio, afetando a legitimidade e a normalidade política.

Considerações finais.
Segundo Pascal, a interpretação dos signos na política deve estabelecer se remetem a qualidades reais ou a signos vazios. Para ele, a presença de signos exteriores demonstra que, seus usuários não possuem nenhuma “ciência”, possuindo, portanto, apenas ciências imaginárias. Ele é um forte crítico da lei e considera a justiça e a verdade como dois pontos sutis que os nossos instrumentos são demasiado redutores para tocar exatamente. Pascal condena fortemente os ideais imperfeitos, porém, mostra que o homem deve usar as regras da sociedade em que vive para marcar sua jornada terrena. Para ele o homem está condenado à pobreza perpétua.

Pascal reconhece que o homem é incapaz conhecer a verdade, uma vez que, sua natureza foi corrompida pelo pecado, e, entre as escolas que prejudicam seu julgamento, há aqueles que ele chama de "poderes enganosos". A "força" é um conceito-chave na concepção política de Pascal que embora elogie a autoridade porque faz cumprir as leis apresentando-os como justos, ao mesmo tempo ele é cético em relação a eficácia da mesma, uma vez que, nenhum homem está preparado para governar os demais, tendo em conta que ambos se odeiam mutuamente. Pascal é realmente muito pessimista relativamente ao destino e ao lugar que o homem ocupa na sociedade e o que ele pode fazer na política.

Sobre a matéria dos grandes, presente nos Três discursos Sobre a Condição dos Grandes, pode-se concluir que, ao contrário de alguns, temerosos de um Pascal revolucionário, seu discurso político é legitimada por autores anteriores. Para Pascal, prevenir-se da revolta é a garantia da paz. Para tanto, não basta a arte do bem governar, é preciso usar a força. Ora, como a força não se deixa manipular por se tratar de uma qualidade palpável, ao passo que a justiça se presta a isso, por ser uma qualidade espiritual, manipula-se a justiça para justificar a força. Esvaziado o velho conceito de justiça: "dar a cada um o que lhe é devido", esta passa a ser o disfarce da força. Os homens passaram a conviver em paz, apesar da concupiscência. Mas, para que essa convivência seja pacífica, é preciso adequar a justiça ao reino da concupiscência.

A inquietação Política moderna traz à tona a atualidade do pensamento pascaliano que marca profundamente a visão do mundo e dos princípios democráticos. É visível que o ser humano convive com vários sintomas negativos a respeito do funcionamento dos mesmos. Em primeiro lugar, a síndrome atitudinal da desconfiança e da insatisfação associada a indiferença em face das alternativas a respeito do regime político e, com menos intensidade, com a preferência pelo autoritarismo. Ou seja, a desconfiança e a insatisfação geram distanciamento, cinismo e alienação em relação à democracia. Em segundo lugar, os cidadãos desconfiados e, ao mesmo tempo, insatisfeitos com o funcionamento da democracia são aqueles que, colocados diante de alternativas anti-institucionais, preferem um regime democrático para o qual os partidos políticos e o parlamento têm pouca ou nenhuma importância.

Referências
ADORNO, F. P. Pascal. 1ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2008 (col. Figuras do Saber).
CHEVALLEY, C. Pascal Contingence et Probabilités. Paris: PUF, 1995.
CUNHA, P. F. PASCAL, JUSTIÇA(S) E PODER (ES) Convite ao Estudo da Filosofia Jurídica e Política em Blaise Pascal. Disponível em: file:///C:/Users/PC/Downloads/2879-8045-1-PB%20(1).pdf.Acessado em 10/10/2014
HAZZARD, P. O Pensamento Europeu do século XVIII. Vol. II Trad. Carlos Grifo Babo. Lisboa: Editora Presença e livraria Martins Fontes, sd.
PARRAZ, I. O duplamente infinito e a situação do homem na natureza em Blaise Pascal. Disponível na Internet no seguinte link: ttp://www.pucsp.br/~posfil/Pragmatismo/cognitio_estudos/cog_estudos_v5n2/cog_est_52_Parraz.pdf. Acessado em 05/10/2014.  
SILVA, A. G. da. PASCAL: Cientista e Filósofo Místico - Coleção Filosofia Comentada – Editor Lafonte, 2011.
PASCAL, B. Três Discursos sobre a Condição dos Grandes. Tradução João Emiliano Fortaleza de Aquino, 2005. Disponível em: http://www.uece.br/kalagatos/dmdocuments/V2N4-Tres-discursos-sobre-a-condicao-dos- randes.pdf. Acesso em 16/10/2014.
________. Pensées (trans. Honor Levi) (Oxford: Oxford Universiti Press 1995), p. 143. Pascal. Cognitio-estudos, v. 5, n. 2, jul.- dez. 2008, p. 178-189.
________. Pensamentos. v.16. Os Pensadores. Trad. de S. Milliet. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).
PONDÉ, L.F. A Era do Ressentimento. 1ª Edição – São Paulo S.P. Editora LeYa 2014. 170 p.
______. O Homem Insuficiente: Comentários de Antropologia Pascaliana 1ª Ed. São Paulo: Editora EDUSP, 2001 (col. Ensaios de Cultura, 19)
Revista CULT On-line. Edição 88: disponível no seguinte endereço eletrônico  http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/meditacoes/.Acessado em 10/10/2014.
SPONVILLE, A.C. Pascal - Pensamentos sobre Política. 1ª Edição, Editora Martins Fontes, 1994. Tradução: Paulo Nunes – São Paulo. – (Coleção Clássicos)




[1] Mestrando em Ciência da Religião. 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Discussões filosófico-teológicas a respeito do Pecado Original


O objetivo deste texto é relatar de forma objetiva, a visão de vários pensadores sobre o aspecto histórico da expressão “Pecado Original” e suas consequências para a teologia cristã.

O Pecado.
Para melhor conhecimento ou interação do tema, precisamos perceber a forma como o ‘pecado’ era visto pelo mundo cristão e suas implicações. Santo Agostinho definiu pecado como: “O que é dito, feito ou desejado contra a lei eterna, entendendo como lei eterna a vontade divina cujo fim é conservar a ordem no mundo e fazer o homem desejar cada vez mais o bem maior e cada vez menos o bem menor”. Tomaz de Aquino e Kant concordam com Santo Agostinho e acrescentam: “que pecado é a transgressão da Lei Moral vista como um mandamento divino.” Santo Agostinho conclui: “que o pecado deliberado do primeiro homem foi a causa principal da originalidade do pecado no mundo, isto caracterizou a mancha com a qual todos nós nascemos com ela

Pecado “... é a transgressão da lei” (1Jo 3:4), transgressão consciente ou não dos princípios divinos. No caso de Adão e Eva, a única proibição conhecida era de que “... da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. (Gn 2:17) Essa proibição, era a prova de lealdade entre criatura e Criador. Nossos primeiros pais pecaram, pois, “O SENHOR Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado”.(Gn 3:23) E o apóstolo Paulo afirma: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. (Rm 5:12).

Embora o pecado já estivesse presente no universo antes da queda de Adão e Eva, evidenciado pela presença do tentador no Jardim do Éden, o que nos prende a atenção é o pecado dos nossos primeiros pais e como este pecado foi transmitido aos seus descendentes. O pecado de Adão afetou muito mais do que ele próprio. Como diz Santo Agostinho “o pecado deliberado pelo primeiro homem foi a causa do Pecado Original e que a mancha hereditária foi transmitida como conseqüência desse pecado”.

A Doutrina do Pecado Original
Stanley Horton afirma que “esta questão é chamada Pecado Original e postula três perguntas: Até que ponto, por quais meios e em que base o pecado de Adão é transmitido ao restante da humanidade?” E de acordo com Ellen White,“O pecado provocou terrível separação entre Deus e o homem”. Emanuel Kant, por sua vez, define o pecado como uma fraqueza inerente à natureza humana, sem se envolver em interpretações históricas.

Conceito judaico: A definição de Pecado Original no conceito judaico está mais ligada à idade em que a manifestação da natureza má se percebe em uma pessoa.

As discussões filosófico-teológicas a respeito do Pecado Original geralmente tiveram como objeto a maneira como esse Pecado se transmitiu de Adão aos outros homens, e não o pecado em si ou sua natureza. E este tema tem sido exposto na história do cristianismo como: “estado de culpa”. Há uma corrupção física da raça humana, corrupção derivada de Adão, mas esta não constitui pecado e não envolve culpa.

Tomaz de Aquino enumerava duas hipóteses principais, aduzidas para a solução deste problema: “a hipótese do Traducianismo, segundo a qual a alma racional transmite-se com a semente, de tal maneira que de uma alma infecta derivam almas infectas”; e a hipótese da hereditariedade, segundo a qual “a culpa da alma do primeiro genitor transmite-se à prole, embora a alma não se transmita do mesmo modo com os defeitos do corpo se transmitem de pai para filho”.

Ao referir-se ao agnosticismo, Stanley diz que “qualquer assertiva quanto à pecaminosidade que vai além de uma conexão entre Adão e a raça humana é considerada especulação filosófica”; Pelágio ensinava “que a justiça de Deus não permitiria a transferência do pecado de Adão a outras pessoas e que, portanto, todas as pessoas nascem sem pecado e livre arbítrio. Para ele os indivíduos nascem com a mesma natureza de Adão antes da queda. O pecado é disseminado pelo mau exemplo”. Para ele, “a morte de Cristo é reduzida a um bom exemplo”.

Santo Agostinho, em oposição a Pelágio, defendeu a ideia de que o pecado de Adão transmite a sua responsabilidade a todos os homens e os faz culpáveis. Seus argumentos eram dois: Adão é o pai físico de toda a raça humana, os homens são pecadores por haverem herdado o pecado como descendentes deste primeiro pai pecador; e Adão era o representante de toda raça humana. Em consequência todos os homens são pecadores em Adão.

Tomás de Aquino sustentava que o Pecado Original, considerado em seu elemento material é concupiscência, mas em seu elemento formal é a privação da justiça original. “O Pecado Original é descrito como um amolecimento da natureza”. Já Calvino diferia de Santo Agostinho em dois pontos: acentuava o fato de que o pecado não é uma coisa puramente negativa e que não se limita à natureza sensorial e emocional do homem, mas, está difuso em todas as partes da ‘alma’. O que nos torna sujeitos a ira divina.

Semi-pelagianismo: contrários ao pensamento agostiniano de que a natureza do homem, tanto física como moral, é totalmente corrompida pelo pecado de Adão de modo que ele não pode deixar de pecar, admitia que a raça humana toda está envolvida na queda de Adão, mas negava a depravação total do homem, a culpa do Pecado Original e a perda da liberdade da vontade. Sobrou o livre arbítrio suficiente para a iniciativa de ter fé em Deus, e então Ele corresponderá.
Tertuliano introduziu na igreja latina a tendência de que a propagação da alma envolve a propagação do pecado. E Ambrósio foi além de Tertuliano ao considerar o Pecado Original como um estado, distinguindo entre a corrupção inata e a resultante culpa do homem.

Transmissão natural ou genética: Sustenta que a transmissão da natureza corrupta baseia-se na herança. “Por certo que as características espirituais são transmitidas da mesma forma que as naturais”. Recebem a natureza corrompida, mas não a culpa.

Imputação Mediada: Entende que Deus imputou culpa aos homens por meios indiretos ou mediados. Citando Placeu (1596 – 1655) Stanley Horton afirma que o pecado de Adão o fez culpado, e, como castigo, Deus corrompeu-lhe a natureza. Embora os descendentes não sejam culpados pelo pecado de Adão, mesmo assim receberam as consequências de seu pecado.

Realismo: O tecido da alma de todas as pessoas estavam realmente e pessoalmente em Adão, participando de fato no seu pecado. Cada uma pecou.
Os evolucionistas acreditam que o pecado é um resquício natural da anterior natureza animalesca do homem. Para Santo Agostinho a corrupção era transmitida pelo ato sexual. Assim conseguia manter Cristo livre do Pecado Original, porque Ele nasceu de uma virgem.

Wayne Grudem, em seu livro, Teologia Sistemática, 1999, p 405 define da seguinte maneira a questão do Pecado Original:
Primeiro: o seu pecado atingiu a base do conhecimento, porquanto Eva deu uma resposta diferente à pergunta: ‘o que é verdadeiro?’ mas Eva decidiu duvidar da veracidade da Palavra de Deus, então fez uma experiência para ver se Deus falava a verdade.
Segundo: seu pecado atingiu a base dos parâmetros morais, pois ela também deu uma resposta diferente à pergunta: ‘o que é certo?’ Deus dissera que era moralmente certo que Adão não comesse o fruto daquela única árvore. Mas a serpente sugeriu que seria certo comer porquanto eles se tornariam ‘como Deus’ (Gn. 3:5).
Terceiro: Seu pecado deu uma resposta diferente à pergunta: ‘quem sou eu?’. E na sua insensata desobediência Adão e Eva sucumbiram à tentação de ser ‘como Deus’.

http://www.trabalhosfeitos.com/ensaios/Pecado-Original/157785.html


quinta-feira, 5 de junho de 2014

O JANSENISMO DE PASCAL

A "primeira conversão" de Blaise Pascal ao jansenismo* se deu através da amizade criada com dois médicos franceses que estavam tratando de seu pai. A influência jansenista foi importante redação das Cartas Provinciais que amplamente prejudicaram os jesuítas.

A nota é do sítio Jesuit Restoration 1814, 25-03-2014. A tradução é deMoisés Sbardelotto.


Blaise Pascal foi um gênio - ele fez descobertas e invenções inovadoras nos campos da matemática, física, dinâmica de fluidos, ciências naturais e aplicadas. Ele teve uma intensa e estreita relação com seu pai, um coletor de impostos em Rouen. Sendo uma criança prodígio, seu pai era seu mentor. Ainda adolescente, inventou a calculadora mecânica. Mais tarde, fez um impacto significativo na geometria, e seu trabalho sobre a teoria da probabilidade influenciou fortemente o desenvolvimento da economia moderna e das ciências sociais.

No entanto, quando tinha 23 anos, no inverno de 1646, aos 58 anos de idade, seu pai quebrou o quadril quando escorregou e caiu em uma rua gelada de Rouen. No século XVII, isso era considerado um acidente muito grave e muitas vezes fatal. Pascal escolheu dois dos melhores médicos da França, que estavam trabalhando localmente, para o tratamento de seu pai, o que fizeram com sucesso ao longo de três meses. Durante esse tempo, eles se tornaram amigos próximos da família.

Ambos os médicos eram jansenistas e tornaram-se muito influentes, o que levou a uma espécie de "primeira conversão" de Pascal, que começou a escrever sobre temas teológicos no decorrer do ano seguinte. Seu pai morreria cinco anos mais tarde, e logo depois sua irmã Jacqueline anunciou que iria se tornar postulante no convento jansenista de Port-Royal. Pascal ficou desapontado, mas, no fim, com o coração pesado, permitiu que ela fosse. Isso envolveria o fato de assinar mais da metade da herança e fez com que ele visse o convento com desconfiança, a princípio, alegando que ele agia como uma seita com o controle sobre sua irmã.

Entretanto, tudo isso mudou quando, em 23 de novembro 1654, entre as 22h30min e as 0h30min, Pascal pareceu ter tido uma intensa visão religiosa. Isso teve um impacto tão grande sobre ele que imediatamente ele registrou a experiência - abrindo suas notas com as seguintes palavras: "Fogo. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e estudiosos... ". E concluiu citando o Salmo 119,16: "Eu não me esquecerei da tua palavra. Amém".

Essa experiência foi tão importante que ele costurou com cuidado o documento em seu casaco e sempre o transferia quando trocava de roupa; mas, foi descoberto apenas por acaso depois de sua morte. Ele renovou sua crença e seu compromisso religioso e em seguida foi fazer um retiro de duas semanas em Port-Royal. Ele se tornou um visitante regular e começou a escrever suas Cartas Provinciais, que foram efetivamente um ataque sistemático contra os jesuítas, a partir de uma perspectiva jansenista. Elas provaram ser imensamente populares, amplamente divulgadas e muito prejudiciais para a Companhia.

 Jansenismo
 Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/529733-o-jansenismo-de-pascal

segunda-feira, 2 de junho de 2014

OS COMEÇOS DA SEGUNDA ANTROPOLOGIA PASCALIANA

 Só nos interessaremos aqui por um único tema: o do pensamento ou da razão, enquanto nela consiste justamente a dignidade do homem, segundo o que sabemos da "Conferência A.P.R." – e do bloco "Grandeza" –, ou pelo menos de sua pars destruens, antifilosófica. Privilegiamos esse tema para colocar em evidência a diferença radical de problemática entre as duas antropologias, que partem de um mesmo ponto cartesiano, o pensamento de si.

Um começo cartesiano: o pensamento do homem e o divertimento
O fragmento La 620 manifesta de maneira surpreendente a mudança radical de problemática que desejamos acentuar. Como outros fragmentos, começa de maneira literalmente cartesiana. Mas, à diferença dos fragmentos textualmente vizinhos, faz sobressair a novíssima reflexão sobre o divertimento. Demonstremos esse ponto.

Eis a primeira parte de La 620: "O homem é visivelmente feito para pensar. É toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever está em pensar como deve [comme il faut]. Ora, a ordem do pensamento é começar por si, e por seu autor e fim." Nada é mais cartesiano: o pensamento como essência do homem, sua dignidade e seu mérito. E seu dever: pensar como deve; isto é, segundo a ordem, ou seja, o método, "ordem" que chega imediatamente: a ordem do pensamento. A ordem do pensamento é pensar segundo a ordem. Como Descartes diz a Mersenne em suas Meditationes em novembro de 1640: trato aqui "de todas as primeiras coisas que podemos conhecer filosofando com ordem". E a ordem prescreve começar por si (Meditatio II), por seu autor (Meditatio III) e seu fim. A primeira parte de La 620 poderia perfeitamente estar no bloco "Grandeza". Pensemos no fragmento La 113: "Não é do espaço que devo procurar minha dignidade [entendamos rigorosamente o homem como res extensa], mas da ordenação do meu pensamento." Ela poderia também ser aproximada de La 200 (o segundo fragmento sobre o "caniço pensante"): "Toda nossa dignidade consiste pois no pensamento. É daí que temos que nos elevar (...). Trabalhemos, pois, para pensar bem: eis o princípio da moral." Entendamos: temos o dever de pensar como se deve: a moral também está submetida à jurisdição da ordem. Dito de outra forma, a primeira parte de La 620 poderia perfeitamente pertencer à primeira antropologia. Ela é também muito próxima de La 756, intitulado "Pensamento": "Toda a dignidade do homem está no pensamento." Mas tão logo a dignidade era reconhecida, La 756 acionava a contrariedade característica da primeira antropologia, marcando a própria ambivalência do pensamento, admirável e tolo, grande e baixo:

Toda a dignidade do homem está no pensamento. Mas que é o pensamento? Que tolo! O pensamento é, pois, uma coisa admirável e incomparável por sua natureza. Seria preciso que tivesse estranhos defeitos para ser desprezível, mas os tem tais que nada é mais ridículo. Como é grande por sua natureza! Como é baixo por seus defeitos!

Eis uma reflexão típica da primeira antropologia: grandeza e baixeza em um mesmo sujeito. Comparemos agora com La 620. Veremos que o mesmo começo cartesiano conduz a uma outra coisa. Não a uma desvalorização do pensamento, ao mesmo tempo grande e baixo, mas à oposição com o pensamento do mundo – esse mundo tão ausente da primeira antropologia (e a fortiori, o tema da "vaidade do mundo "): "Ora, em que pensa o mundo?" Donde o surgimento do divertimento como pensamento mundano: "Nunca nisso, mas em dançar, tocar alaúde, cantar, fazer versos, passar o anel etc... e em combater, fazer-se rei, sem pensar no que é ser rei e ser homem." Pascal articula então, opondo-os, o pensamento de si (segundo uma marca cartesiana tanto literal quanto rigorosa) e o pensamento do mundo (que não tem mais nada de cartesiano).

"Pensar no que é ser rei e no que é ser homem": eis exatamente o começo da segunda antropologia. Pensar no que é ser rei e no que é ser homem é, para o rei, um mesmo e único pensamento. Para nós, o pensar em si mesmo como rei é divertir de pensar a si como homem: por isso podemos nos divertir "tornando-nos rei" quando não somos rei. Para o rei, porém, que não se diverte pensando em se tornar rei, mas a quem "as pessoas" procuram divertir porque ele é rei, "pensar nele", é pensar nele enquanto rei, ou seja, "considerar e fazer uma reflexão sobre o que ele é", e desse modo pensar nele enquanto homem: "O rei está cercado de pessoas que só pensam em diverti-lo e em impedi-lo de pensar em si mesmo. Porque ele fica infeliz, embora seja rei, se pensar em si", ou seja, se ele pensa em si como rei (revoltas, mortes, doenças inevitáveis) e como homem, em razão das "mil causas essenciais de tédio" que lhe valem "o estado próprio de sua compleição". Vemos imediatamente que essa nova antropologia não é "abstrata". Trata-se do rei em sua diferença em relação com "as pessoas comuns", somente porque o modelo real permite universalizar a instabilidade sentida pelas pessoas comuns, na diversidade de sua "busca pelas coisas". O modelo real não tem outra função a não ser assegurar a universalidade da instabilidade do divertimento.

Sobretudo, porém, assistimos aqui a um novo sentido de pensar em si. Pensar em si não é mais pensar no conceito de si (res cogitans), em Deus como seu autor e seu fim, mas em si socialmente e existencialmente, em si como rei e como homem que, não se divertindo, seca-se de tédio. Não se trata mais de si como ordem do pensamento (o si como primeira coisa que podemos conhecer filosofando com ordem), mas de si como de um novo objeto de pensamento e, por isso mesmo, segundo um novo sentido de pensar. É por isso que Pascal multiplica os sinônimos de pensar. Pensar em si para o homem é "considerar-se", "considerar e fazer uma reflexão sobre o que ele é", ver [pela visão de] "o que ele é", "pensar em nós" etc. Mas esse "o que ele é" não se refere mais à essência e sim à existência: pensar o que se é, é pensar seu presente (e não mais estar "no pensamento do futuro", La 36), é pensar sua finitude. Pois, pensar sua existência é "sentir [seu] nada" (La 36). Em outros termos, Pascal conserva o conceito cartesiano de evidência (pensar em si é pensar dentro da evidência), mas a evidência é a de um infortúnio, um tédio, um nada. É por isso que acreditamos poder mostrar que era uma contradição e não uma substituição que se encontrava no princípio do divertimento: o divertimento decorre de uma contradição entre a evidência e o gozo. É preciso pensar uma verdade que não traga gozo e um gozo que não seja verdadeiro.

Podemos ver que essa análise e o novo sentido de pensar que dela emana não podem mais decorrer da primeira antropologia, assim como não podem decorrer do conceito cartesiano estrito de pensamento do qual partia, no entanto, a reflexão pascaliana. Pensar em si definitivamente não é mais se pensar: a evidência do pensamento de si faz ter acesso ao tédio.

A glória: a razão do homem como alienação de seu pensamento
No fragmento La 411, intitulado "Grandeza do homem" – sem, no entanto, classificá-lo no bloco "Grandeza" –, Pascal faz sua a inovação cartesiana que consiste em chamar de "ideia" alguns de meus pensamentos (segundo um vocabulário ainda cartesiano). Eis o fragmento La 411: "Temos uma ideia tão grande da alma do homem que não podemos tolerar ser desprezados por ela e não gozar da estima de uma outra alma. E toda a felicidade dos homens consiste nesta estima". O que faz então com que esse fragmento não conste no bloco "Grandeza"? Como podemos ver imediatamente, trata-se da prova dada da própria grandeza: "não podemos tolerar (...) não gozar da estima de uma alma" –, que antecipa o fragmento La 470: o homem "não fica satisfeito se não tiver a estima dos homens". A qualificação repetida "tão grande" é igualmente notável: "Temos uma ideia tão grande da alma do homem (...)", "ele estima tão grande a razão do homem (...)". Com efeito, La 470 descreve a estima que o homem tem pela razão do homem. Entendamos: não a estima que tenho por minha própria razão, mas a que tenho pela dos outros homens. Ou seja, a estima que tenho pela razão dos homens enquanto podem ter-me em estima, ou ainda, a estima que tenho pela razão de outrem enquanto pode ter-me em estima. O ponto de partida aqui é Montaigne (Ensaios, I, XVI – "Da Glória"), ou Montaigne logo substituído por Descartes. Encontramos até mesmo o par baixeza e excelência, mas desta vez não vale mais por ele mesmo e tem como simples função dar início à análise da admiração e da glória. Podemos agora ler o fragmento La 470:

A maior baixeza do homem está na busca da glória, mas é nisso mesmo que está a maior marca de sua excelência [a saber, a razão do homem]; pois qualquer que seja a posse que ele tenha sobre a terra, qualquer que seja a saúde e a comodidade essencial que tenha ["essencial" retoma os "efetivos" e "substanciais" de Montaigne], não fica satisfeito se não tiver a estima dos homens. Considera tão grande a razão do homem [acentuamos novamente o redobro tipicamente pascaliano: o homem estima a razão do homem onde possivelmente ele é tido em estima] que, qualquer que seja a vantagem que tenha na terra, se não estiver também colocado vantajosamente também na razão do homem, ele não fica contente. É o mais belo lugar do mundo, nada pode desviá-lo desse desejo, e é a qualidade mais indelével do coração do homem.

O homem estima, pois, a razão do homem, porque aí ele pode ser estimado, e a estima mais que o próprio real; esse lugar imaginário é o "mais belo lugar do mundo". O mundo imaginário que é a razão de um outro homem tem mais ser para o pensamento do homem do que seu ser real. Essa hierarquia é marcada até na distinção entre a terra (o mundo real) e o conceito propriamente pascaliano de mundo: qualquer vantagem que o homem tiver sobre a terra (ainda que seja rei), seu mundo é imaginariamente constituído pela razão de um outro homem. Para falar a linguagem dos escolásticos ou do Descartes da Meditatio III, o ser objetivo, ou seja, o ser por representação na idéia, cessa de ser nada (nihil, os escolásticos) ou de não ser inteiramente nada (non plane nihil, Descartes) para ser o mais real, o mais ente. Pelo pensamento o homem se desapropria de seu ser por querer ser na razão de outrem. A razão de outro homem é o lugar onde quero ser, onde quer ser meu pensamento, onde ele quer se alienar. Meu pensamento se aliena na razão de outrem. A razão do homem é o lugar da alienação do pensamento do homem. Vemos, enfim, plenamente, o que significa pensar; não pensar em si, mas o pensamento se posso dizê-lo, de si do mundo: pensar significa imaginar-se. Com efeito, somente a imaginação pode autorizar esse processo, propriamente derivado de uma projeção imaginativa, que consiste em pensar no pensamento de outrem. Vemos então a singularidade dessa suposta grandeza – que, se nós a lêssemos segundo o plano da primeira antropologia, assinalaria antes uma miséria, uma forma de dependência ou de decadência. Lembremo-nos de que a grandeza é aí determinada como pensamento da miséria. Singularmente, a grandeza não é mais aqui a da relação do pensamento consigo mesmo, pela qual a pequenez do corpo é, por assim dizer, recuperada porque anulada pela multiplicação que lhe oferece o pensamento que o considera e absorve. A grandeza é, aqui, a do próprio pensamento – que deve recuperar a baixeza de nossa vida (início de La 806), que quer a glória (La 470) – e que, por isso, se pensa – não a si mesmo –, mas a si mesmo descentrado no pensamento de outrem. Termo a termo, as duas (supostas) modalidades da grandeza se oporiam. No primeiro caso, a grandeza provém da inclusão de sua própria miséria que o homem realiza pelo pensamento. Aqui, em compensação, a grandeza do pensamento não se manifesta em um movimento de englobamento, mas no fato de procurarmos ser um centro para outrem. Aquilo que nos torna grandes na primeira antropologia não seria suficiente para fazer aqui nossa grandeza, já que a da primeira antropologia deve ser confirmada por outrem: ela se descentra, portanto.

O fragmento La 806 explicita esse pensamento ou imaginação concebidos por Pascal como alienação. Para fazê-lo, define a vida imaginária como interiorização de uma identidade substitutiva. O imaginário é sempre o efeito de um jogo intersubjetivo, ele é sempre pensado por Pascal na relação do interior com o exterior. Como unir interior e exterior? O interior é vazio. A riqueza está no exterior, fora – acentuamos de passagem a que ponto essa reflexão é paradoxal no século XVII, que oferece sempre doutrinas da riqueza interior, da interioridade como riqueza. Na falta de um bem verdadeiro, o homem deve apropriar-se da exterioridade, ou seja, identificar-se com o exterior. A imaginação toma emprestado do exterior algo que lhe permite organizar o vazio interior do homem. Ela é, então, algo em mim que me habita, um poder que seria como um sujeito dentro do sujeito. A imaginação é o análogo do eu no próprio eu, um sujeito no sujeito, que organiza a presença, no próprio sujeito, de uma exterioridade. Eis exatamente a função do imaginário: identificar-se a exteriores diferentes e instáveis. O imaginário é o âmbito da instabilidade. Compreendemos então que o divertimento será um caso particular desta estrutura de identificação com a exterioridade, ou seja, dessa estrutura de alienação do pensamento do homem. O fragmento La 806 descreve, com efeito, um tal processo de relação com o exterior, no qual este se torna o lugar de um outro eu, onde outrem se torna o lugar onde quero viver. Leiamos o La 806:

Não nos contentamos com a vida que temos em nós e em nosso próprio ser. Queremos viver uma vida imaginária na ideia dos outros, e para isso fazemos esforço para aparecer. Trabalhamos constantemente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro. E se possuímos quer a tranquilidade, quer a generosidade, quer a fidelidade, apressamo-nos em mostrá-lo a fim de ligar essas virtudes ao nosso outro ser e as desligaríamos até de nós para juntá-las ao outro; seríamos de bom grado poltrões para adquirir a reputação de ser valentes. Grande marca do nada de nosso próprio ser não se satisfazer com um sem o outro, e trocar com frequência um pelo outro. Pois infame seria quem não morresse para conservar a honra.

Queremos viver na idéia dos outros. O eu imaginário não está em mim, mas no outro. O que me satisfaz é preencher o vazio do eu com as representações que o outro tem de mim. La 806 dissocia o pensamento de si do trabalho do eu ("Trabalhamos constantemente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro"), fazendo da representação que o outro tem de mim a finalidade do trabalho do eu. Outrem é o mestre de minha identidade. Temos então que tratar aqui de uma situação inversa e simétrica do bom amor de si (os membros pensantes): amar-se de um amor justo, é amar-se como outrem – Deus – nos ama, é interiorizar sua diferença. Aqui também Pascal elabora a teoria de uma capacidade de ser fora de si, mas inversa: necessito do outro, enquanto ele fantasia as imagens de meu eu. O eu é o efeito desta imaginação. O imaginário é pura ficção intersubjetiva, da qual o eu é um efeito.

Podemos concluir brevemente, sublinhando, a partir da análise que precede, certos pontos pelos quais caracterizávamos acima a segunda antropologia:
- Na segunda antropologia, Pascal não exibe o homem sem Deus, mas o homem sem o eu, no sentido exato de que meu eu pertence ao outro (amar-se é, então, imaginar-se agradando ao outro); o que chamamos de alienação. Confirma-se, nesse sentido preciso, que a segunda antropologia não é previamente teológica.

- Uma mesma lógica governa o conjunto das análises da segunda antropologia sobre a glória, a imaginação, a justiça ou o divertimento. Com o tema existencial da glória, acabamos de verificar que uma das constantes – pois isso não é exposto somente no fragmento sobre a imaginação – que a segunda antropologia revela é que o homem se descobre habitado por um outro sujeito, a imaginação. Por aí mesmo a segunda antropologia mostra ser um pensamento da alienação, um pensamento do pensamento como alienação.

Fonte: 
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2006000200007&script=sci_arttext&tlng=en.%20A%20partir%20do%20artigo%20de:

sexta-feira, 23 de maio de 2014

OBSERVAÇÕES SOBRE A ANTROPOLOGIA PASCALIANA

A primeira antropologia pascaliana 

Em Pascal et la philosophie, chamamos de primeira antropologia a que Pascal emprega na "Conferência a Port-Royal" (principalmente os fragmentos La 149, ou seja, o bloco "A.P.R." e La 131, no bloco "Contrariedades") e sobre a qual fundamenta o projeto da Apologia no qual trabalha depois da interrupção das Provinciais. Naturalmente, esta primeira antropologia pode ser encontrada antes da "Conferência", em particular na Entrevista com M. De Sacy. Ela se caracteriza essencialmente pela retomada da oposição da dignitas e da miséria hominis, oposição herdada de uma tradição muito vasta e rica, na qual Santo Agostinho ocupa um lugar eminente, em especial com o De vera religione. Essa primeira antropologia é não somente empregada na "Conferência a Port-Royal", mas ela culmina aí e, culminando com Pascal, leva a seu auge a antropologia tradicional da miséria e dadignitas hominis. Entretanto, como veremos, o que constitui um auge para essa tradição inteira, considerada na longa história da quaestio hominis, talvez seja apenas uma etapa para o próprio Pascal. Nessa primeira antropologia, o homem aparece como um paradoxo, ou um "motivo de contradições" [sujet de contradictions]: nele se encontram ao mesmo tempo grandeza e miséria. O fragmento La 131 fixou a expressão mais forte: "Que espécie de quimera é então o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que motivo de contradições, que prodígio? Juiz de todas as coisas, verme imbecil; depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e escória do universo." E frente à constatação desse oximoro transformado em pessoa, La 131 também lançou aos filósofos e às religiões um desafio à explicação: "Quem deslindará esse emaranhado?" Não se pode colocar mais claramente o homem como quaestio.

Assinalamos a substituição cartesiana que troca a grandeza dos deveres conhecidos do homem, exaltada na Entrevista à maneira do estoicismo, por aquela do pensamento humano, da dignidade do homem segundo a "Conferência A.P.R".O conhecimento dos deveres foi substituído pelo conhecimento (simplesmente). Essa substituição é particularmente evidente no bloco 6, "Grandeza". De toda forma, é uma mesma constituição antropológica que está presente nos dois casos, a das contrariedades (segundo o bloco 7) que resultam da contradição fundamental entre miséria e grandeza do homem, contradição que define propriamente a dupla natureza. O homem é esse hypokeimenon – suporte, sujeito – que assume tanto a baixeza quanto a grandeza. Ou melhor, a natureza una do homem é o suporte de dois "sujeitos", miséria e grandeza, natureza e graça – o que Emmanuel Martineau chamou de "difisismo antropológico" de Pascal. O título, ou antes, a dupla rubrica do fragmento La 122 resume essa constituição antropológica de maneira tão clara quanto lacônica: "A.P.R. Grandeza e Miséria". Ora, essa constituição antropológica fundamental tem um interesse primeiro e essencial para Pascal: colocar em evidência a parcialidade das filosofias, que são capazes de ver apenas ou a grandeza ou a miséria, mas não podem pensar as duas ao mesmo tempo: elas são, necessariamente, discurso da identidade – pelo menos as filosofias antigas ou sua reapropriação moderna; é preciso, evidentemente, excetuar Descartes dessa análise.

A primeira antropologia admite uma entrada imediatamente apologética: mostrar a impotência das filosofias para explicar o homem e, consequentemente, liberar a única solução: a verdadeira religião. A própria estrutura da apologética pascaliana se assenta sobre a constatação do fracasso das filosofias e sobre o maior poder teórico da verdadeira religião, única capaz de dar razão – ou seja, de dar razão da dupla natureza humana – lá onde a filosofia fracassa, não sendo capaz senão de um discurso parcial, o que explica a diversidade de suas seitas: "A partir deste princípio que vos abro [é verdadeiramente uma abertura para a verdadeira religião] podeis reconhecer a causa de tantas contrariedades que causaram espanto a todos os homens e que os repartiram em tão diversos sentimentos" (La 149). É a admirável prosopopeia da sabedoria de La 149.

Em resumo, o incompreensível se explica. Para o agostino-cartesiano Pascal, a verdadeira religião exibe os princípios. Há um princípio de grandeza e um princípio de miséria: As grandezas e as misérias do homem são tão visíveis que é absolutamente necessário que a verdadeira religião nos ensine tanto que existe um grande princípio de grandeza no homem quanto que há nele um grande princípio de miséria. É também necessário que ela nos explique a razão dessas espantosas contrariedades.
Não são as filosofias que assumem o princípio da razão – elas só têm acesso a uma razão insuficiente; não falsa, parcial, mas, sim, a verdadeira religião – e por isso ela é verdadeira.

Concluímos essa síntese acentuando cinco pontos:
1. A primeira antropologia é a da oposição constitutiva da grandeza e da miséria.
2. Tal oposição tem uma origem teológica – cristianização ou agostinização do nosce te ipsum antigo. Ela dá a conhecer o homem como um paradoxo.
3. A oposição entre grandeza e miséria é totalmente tradicional; Pascal a leva sem dúvida a seu ápice, mas, por isso mesmo, a seu último momento. Em todo caso, mesmo se ele realiza uma obra poderosa, de forma alguma é uma obra original. Muito pelo contrário, Pascal (não) pretende (senão) reatualizar o De vera religione de Agostinho, seu modelo.
4. A primeira antropologia não constitui o fim da análise pascaliana. Ela não é, por ela mesma, o objeto da reflexão e do discurso de Pascal, mas o meio e o instrumento para um outro fim, o de promover a verdadeira religião contra as filosofias. Trata-se, propriamente, de um uso apologético da antropologia. A primeira antropologia é de origem teológica e de finalidade apologética.
5. A primeira antropologia é uma antropologia "abstrata", não tanto no sentido em que é abstrata a espiritualidade da Escola francesa, influenciada por Benoît de Canfeld (de onde advêm os conceitos, que nós não podemos senão invocar aqui, de estado [status], de condição, etc. – mas a antropologia pascaliana sempre foi cristológica), quanto no sentido mais comum, no qual ela considera a natureza humana de maneira puramente teórica e não concreta, um homem sem determinação existencial.
 O conceito de segunda antropologia pode, então, ser introduzido pela diferença rigorosa com esses cinco critérios característicos da primeira antropologia. Em Pascal et la philosophie, cujo objeto era a relação que o pensamento pascaliano mantém com a filosofia, desenvolvemos longamente a primeira antropologia, apenas apontando o que seria no entanto preciso dizer de uma segunda antropologia. A propósito do fragmento La 136 (o divertimento), falávamos de uma "análise completamente original de Pascal", que não pode mais ser entendida "dentro da problemática binária das contrariedades". Nas notas de sua edição, estritamente contemporânea a nosso próprio trabalho, mais exatamente em sua nota sobre o discurso XIII, "Da glória", Emmanuel Martineau afirmava de maneira precisa e justa o que parece agora evidente graças a ele, mas que nunca tinha sido trazido à luz: a diferença de princípio entre a antropologia da "Conferência A.P.R." e "o grupo dos grandes discursos pascalianos sobre a glória, a imaginação, a justiça e o divertimento". A "Conferência A.P.R." inteiramente orientada pela tradicional dicotomia antropológica da grandeza e da miséria (...) se abstém, na maioria das vezes, de evocar qualquer tema "existencial", e, pelo menos, nunca nos fala nem de "glória", nem de "imaginação", nem de "injustiça", nem de "divertimento"! Filha da Entrevista com M. de Sacy, a "A.P.R." herdou dela a tendência "abstrata": nunca avança mais longe no terreno da vida concreta do que tinha feito Epiteto, e, de Montaigne, só retém a crítica cética das filosofias. Qualquer que seja sua novidade, ela permanece apologética em um sentido estrito e tradicional (agostiniano). Podemos dizer o mesmo dos textos que vamos reler? Pelo contrário: "apologéticos", eles o são na verdade tão pouco, que esta é, antes, uma das primeiras vezes na história do pensamento ocidental que a existência humana é tomada em vista dela mesma e por ela mesma!

Essas linhas são de uma perfeita exatidão e caracterizam indiscutivelmente a diferença fundamental entre as duas antropologias. Como conclusão, ainda sobre o divertimento, observaríamos que "a antropologia do divertimento e as análises novas e decisivas que a ela estão ligadas constituem uma reflexão propriamente original e totalmente elaborada (...)". Consideraríamos, enfim, a possibilidade de ir além, esboçando uma eventual tensão, ou até mesmo uma verdadeira incompatibilidade entre o projeto apologético, tal qual a primeira antropologia o autoriza, e outras reflexões antropológicas de um "último" Pascal:
(...) não é certo que o projeto apologético inicial de Pascal, fundamentado na oposição das filosofias à verdadeira religião e na antropologia da dualidade grandeza e miséria tenha sido capaz de integrar, sem dificuldades problemáticas maiores, as reflexões bem diferentes nascidas (...) da constituição de uma antropologia fenomenológica bem mais original.
Que reflexões? Elas correspondem ao que Emmanuel Martineau chamou de "discursos da existência humana", ou o "quarteto da existência humana", quarteto dos conceitos fundamentais pelos quais Pascal começa a pensar pela primeira vez em filosofia a existência humana em sua finitude: glória, imaginação, justiça, força e divertimento. Que nos seja permitido, pelo menos provisoriamente, empregar um conceito heideggeriano para nomear o trabalho filosófico – antropológico – novo que se realiza nesses textos: Pascal elabora nada menos que uma analítica existencial. "A miseria e dignitas hominis acaba verdadeiramente", diz Emmanuel Martineau, "assim que o olhar filosófico se apodera, mais que de sua 'dialética' ou de seu 'paradoxo' (A.P.R. A 131b), de seu co-pertencimento ao seio de uma finitude.

Em Pascal et la philosophie – que nos seja permitido citarmo-nos uma última vez – propúnhamos, pois, uma caracterização negativa da hipótese de uma segunda antropologia, que visava designar as reflexões pascalianas que não poderiam entrar na problemática secular da verdadeira religião, por mais renovada que fosse sua expressão em Pascal. Os cinco critérios da primeira antropologia que acabamos de expor permitem simplesmente sistematizar a caracterização negativa da segunda antropologia. Sustentamos, com efeito, que não poderíamos encontrar nenhum dos cinco critérios nas análises que Pascal consagra aos conceitos fundamentais que acabamos de indicar.

Com efeito,
1.    O desaparecimento da consideração da grandeza salta aos olhos. Ao mesmo tempo, desaparece a miséria no sentido da primeira antropologia. Quando dois conceitos formam um par, o desaparecimento de um deles acarreta necessariamente o do outro. O divertimento, por exemplo, não poderia ser subsumido sem precaução sob o antigo conceito de miséria. Observaremos ainda, a título de simples indicador terminológico, que La 136, esse longo fragmento sobre o divertimento, não fornece nenhuma ocorrência de "miséria" (no singular). Observaremos também que o título inicial de La 136, "Miséria do homem", foi rasurado por Pascal em proveito justamente de "divertimento". Para supor que o divertimento pudesse ser concebido como miséria, ou subsumido sob o conceito de miséria, seria preciso pensar uma miséria sem grandeza, o que, com relação ao tópico da primeira antropologia, é desprovido de sentido. A análise do divertimento é fascinante na medida em que não obedece mais a pares conceituais: miséria sem grandeza (na ambivalência de que o que nos consola de nossas misérias é a maior miséria, La 414) ou – ainda retornaremos a esse ponto – divertimento sem conversão. Enfim, ela não obedece mais ao conceito de paradoxo. A razão está justamente na análise puramente fenomenal que Pascal opera.
2. A segunda antropologia não é governada por qualquer princípio teológico. Observaremos assim que o fragmento La 136, para conservar o mesmo exemplo decisivo, não opõe nunca o divertimento à busca por Deus, ou seja, à conversão: a antiga oposição – etimológica e agostiniana –convesio/aversio (mais do que diversio, aliás), converter-se/divertir-se, não tem mais lugar. O divertimento é analisado por ele mesmo, não é mais oposto à conversão, o mundo não é mais oposto a Deus. A consideração de Deus é totalmente ausente do bloco "Divertimento". Os próprios temas da segunda antropologia, começando por "Da glória", são totalmente profanos. Ela não tem outro fundamento além da pertinência de suas próprias descrições. O pensamento do homem como paradoxo foi substituído pelo do homem em sua finitude.
3.    Pascal faz aí uma obra absolutamente original.
4.    A antropologia não é mais colocada a serviço explícito de uma apologética, mas ela é o fim mesmo da análise pascaliana. A segunda antropologia é, pois, inteiramente des-teologizada: a teologia não está nem em seu princípio, nem em seu fim como apologética. Como teria dito Montaigne, Pascal não escreve mais "teologalmente". Seu propósito é bem outro.
5.    Pascal considera aí não somente o homem, mas os homens em suas determinações concretas, existenciais, propriamente em sua existência e não somente em função de uma natureza humana, ainda que contraditória. Por isso também a segunda antropologia poderia legitimamente gabar-se de estar na origem da sociologia, já que ela coloca no princípio de alguns parágrafos um sistema de diferenças entre os homens. 
Naturalmente, porém, uma caracterização positiva da segunda antropologia se impõe. Cada um dos conceitos fundamentais da segunda antropologia requer um estudo preciso. Parece-nos que tais estudos só poderiam ser feitos de um ponto de vista fenomenológico, o mesmo que Pascal impõe sem o que estaremos impossibilitados de apreender tanto a força quanto a novidade de seu propósito, no que ele tem de mais decisivo. Tal estudo foi tentado, por exemplo, por Jean-Luc Marion a respeito do conceito de tédio como o que determina originalmente a condição mundana do homem, a partir da análise heideggeriana do tédio em seu curso do semestre do inverno de 1929-1930, Die Grundbegriff der Metaphysik, em particular o capítulo IV da primeira parte, "Der dritte Form der Langweile: die tiefe Langweile als das 'es ist einem langweilig'". Está bastante claro que as análises heideggerianas permitem, enfim, ler o que, no entanto, se encontrava já em Pascal, mas que não conseguíamos ver. Isso não é menos verdadeiro também para o próprio conceito de mundo, que não abordarei. Não nos interessaremos senão pelo conceito de pensamento. Em vez de tratarmos aqui de um dos temas da segunda antropologia (glória, imaginação, justiça e força, divertimento) por ele mesmo, o que excederia os limites da presente comunicação, gostaríamos de tomar dois exemplos da maneira pela qual se inicia a segunda antropologia. Entendamos bem "se inicia": gostaríamos de tentar colocar em evidência como, a partir de começos cartesianos (e montaignianos) idênticos ou análogos, a segunda antropologia toma seu próprio impulso. Interessar-nos-emos, pois, pela segunda antropologia in statu nascendi, no preciso momento em que o pensamento pascaliano se emancipa de seu incipit cartesiano ou montaigniano, não mais por um efeito de deslocamento ou de subversão conceitual, mas para deixar desenvolver-se uma análise descritiva, propriamente existencial. Contudo, sobre essa própria análise existencial, a presente comunicação permanecerá essencialmente programática.

Feito isso, poderemos entrever como as análises pascalianas da glória, do divertimento, da imaginação etc. são governadas por uma problemática comum. A segunda antropologia se elabora a partir de um mesmo tipo de trabalho sobre a exterioridade e sobre a intersubjetividade imaginária. Que é ser fora de si? Que é ser em outrem? As reflexões da segunda antropologia fazem aparecer o pensamento como alienação voluntária.

 Fonte
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2006000200007&script=sci_arttext&tlng=en.
A partir do artigo de: 
Vincent Carraud
Universidade de Caen (França)