A primeira
antropologia pascaliana
Em Pascal
et la philosophie, chamamos de primeira antropologia a
que Pascal emprega na "Conferência a Port-Royal" (principalmente os
fragmentos La 149, ou seja, o bloco "A.P.R." e La 131, no bloco
"Contrariedades") e sobre a qual fundamenta o
projeto da Apologia no qual trabalha depois da interrupção
das Provinciais. Naturalmente, esta primeira antropologia pode ser
encontrada antes da "Conferência", em particular na Entrevista com
M. De Sacy. Ela se caracteriza essencialmente pela retomada da oposição
da dignitas e da miséria hominis, oposição herdada de uma
tradição muito vasta e rica, na qual Santo Agostinho
ocupa um lugar eminente, em especial com o De vera religione. Essa
primeira antropologia é não somente empregada na "Conferência a
Port-Royal", mas ela culmina aí e, culminando com Pascal, leva a seu auge
a antropologia tradicional da miséria e dadignitas hominis.
Entretanto, como veremos, o que constitui um auge para essa tradição inteira,
considerada na longa história da quaestio hominis, talvez seja apenas uma
etapa para o próprio Pascal. Nessa primeira antropologia,
o homem aparece como um paradoxo, ou um "motivo de
contradições" [sujet de contradictions]: nele se
encontram ao mesmo tempo grandeza e miséria. O fragmento La 131 fixou a
expressão mais forte: "Que espécie de quimera é então o homem? Que
novidade, que monstro, que caos, que motivo de contradições, que prodígio? Juiz
de todas as coisas, verme imbecil; depositário da verdade, cloaca de incerteza
e de erro, glória e escória do universo." E frente à constatação desse oximoro
transformado em pessoa, La 131 também lançou aos filósofos e às religiões
um desafio à explicação: "Quem deslindará esse emaranhado?" Não se
pode colocar mais claramente o homem como quaestio.
Assinalamos
a substituição cartesiana que troca a grandeza dos deveres conhecidos do homem,
exaltada na Entrevista à maneira do estoicismo, por aquela do pensamento
humano, da dignidade do homem segundo a "Conferência A.P.R".O conhecimento dos deveres foi substituído pelo conhecimento
(simplesmente). Essa substituição é particularmente
evidente no bloco 6, "Grandeza". De toda forma, é uma mesma
constituição antropológica que está presente nos dois casos, a das
contrariedades (segundo o bloco 7) que resultam da contradição fundamental
entre miséria e grandeza do homem, contradição que define propriamente a dupla
natureza. O homem é esse hypokeimenon – suporte, sujeito –
que assume tanto a baixeza quanto a grandeza. Ou melhor, a natureza una do
homem é o suporte de dois "sujeitos", miséria e
grandeza, natureza e graça – o que Emmanuel Martineau chamou de "difisismo
antropológico" de Pascal. O título, ou antes, a dupla rubrica do fragmento La 122 resume essa constituição antropológica
de maneira tão clara quanto lacônica: "A.P.R. Grandeza e Miséria".
Ora, essa constituição antropológica fundamental tem um interesse primeiro e
essencial para Pascal: colocar em
evidência a parcialidade das filosofias, que são capazes de ver apenas ou a
grandeza ou a miséria, mas não podem pensar as duas ao mesmo tempo: elas são,
necessariamente, discurso da identidade – pelo menos
as filosofias antigas ou sua reapropriação moderna; é preciso, evidentemente,
excetuar Descartes dessa análise.
A
primeira antropologia admite uma entrada imediatamente apologética: mostrar a impotência das filosofias para
explicar o homem e, consequentemente, liberar a única solução: a verdadeira
religião. A própria estrutura da apologética pascaliana se assenta sobre a
constatação do fracasso das filosofias e sobre o maior poder teórico da
verdadeira religião, única capaz de dar razão – ou seja, de dar razão da dupla
natureza humana – lá onde a filosofia fracassa, não sendo capaz senão de um
discurso parcial, o que explica a diversidade de suas seitas: "A partir
deste princípio que vos abro [é verdadeiramente uma abertura para a verdadeira
religião] podeis reconhecer a causa de tantas contrariedades que causaram
espanto a todos os homens e que os repartiram em tão diversos sentimentos"
(La 149). É a admirável prosopopeia da sabedoria de La 149.
Em
resumo, o incompreensível se explica. Para o agostino-cartesiano
Pascal, a verdadeira religião exibe os princípios. Há um princípio de grandeza e um princípio de miséria: As grandezas
e as misérias do homem são tão visíveis que é absolutamente necessário que a
verdadeira religião nos ensine tanto que existe um grande princípio de grandeza
no homem quanto que há nele um grande princípio de miséria. É também necessário
que ela nos explique a razão dessas espantosas contrariedades.
Não
são as filosofias que assumem o princípio da razão – elas só têm acesso a uma razão
insuficiente; não falsa, parcial, mas, sim, a verdadeira religião – e por isso
ela é verdadeira.
Concluímos essa
síntese acentuando cinco pontos:
1. A primeira
antropologia é a da oposição constitutiva da grandeza e da miséria.
2. Tal oposição tem uma
origem teológica – cristianização ou agostinização do nosce te
ipsum antigo. Ela dá a conhecer o homem como um paradoxo.
3. A oposição entre
grandeza e miséria é totalmente tradicional; Pascal a leva sem dúvida a seu
ápice, mas, por isso mesmo, a seu último momento. Em todo caso, mesmo se ele
realiza uma obra poderosa, de forma alguma é uma obra original. Muito pelo
contrário, Pascal (não) pretende (senão) reatualizar o De vera
religione de Agostinho, seu modelo.
4. A primeira
antropologia não constitui o fim da análise pascaliana. Ela não é, por ela
mesma, o objeto da reflexão e do discurso de Pascal, mas o meio e o instrumento
para um outro fim, o de promover a verdadeira religião contra as filosofias.
Trata-se, propriamente, de um uso apologético da antropologia. A primeira
antropologia é de origem teológica e de finalidade apologética.
5. A primeira
antropologia é uma antropologia "abstrata", não tanto no sentido em
que é abstrata a espiritualidade da Escola francesa, influenciada por Benoît de
Canfeld (de onde advêm os conceitos, que nós não podemos senão invocar aqui, de
estado [status], de condição, etc. – mas a antropologia
pascaliana sempre foi cristológica), quanto no sentido mais comum, no qual ela
considera a natureza humana de maneira puramente teórica e não concreta, um
homem sem determinação existencial.
O
conceito de segunda antropologia pode, então, ser introduzido pela diferença
rigorosa com esses cinco critérios característicos da primeira antropologia.
Em Pascal et la philosophie, cujo objeto era a relação que o pensamento
pascaliano mantém com a filosofia, desenvolvemos longamente a primeira
antropologia, apenas apontando o que seria no entanto preciso dizer de uma
segunda antropologia. A propósito do fragmento La 136 (o divertimento), falávamos de uma "análise completamente original
de Pascal", que não pode mais ser entendida "dentro da problemática
binária das contrariedades". Nas notas de sua
edição, estritamente contemporânea a nosso próprio trabalho, mais exatamente em
sua nota sobre o discurso XIII, "Da glória", Emmanuel Martineau
afirmava de maneira precisa e justa o que parece agora evidente graças a ele,
mas que nunca tinha sido trazido à luz: a diferença de princípio entre a
antropologia da "Conferência A.P.R." e "o grupo dos grandes
discursos pascalianos sobre a glória, a imaginação, a justiça e o
divertimento". A "Conferência A.P.R." inteiramente orientada
pela tradicional dicotomia antropológica da grandeza e da miséria (...) se
abstém, na maioria das vezes, de evocar qualquer tema "existencial",
e, pelo menos, nunca nos fala nem de "glória", nem de
"imaginação", nem de "injustiça", nem de
"divertimento"! Filha da Entrevista com M. de Sacy, a
"A.P.R." herdou dela a tendência "abstrata": nunca avança
mais longe no terreno da vida concreta do que tinha feito Epiteto, e, de
Montaigne, só retém a crítica cética das filosofias. Qualquer que seja sua
novidade, ela permanece apologética em um sentido estrito e tradicional (agostiniano).
Podemos dizer o mesmo dos textos que vamos reler? Pelo contrário:
"apologéticos", eles o são na verdade tão pouco, que esta é, antes,
uma das primeiras vezes na história do pensamento ocidental que a existência
humana é tomada em vista dela mesma e por ela mesma!
Essas
linhas são de uma perfeita exatidão e caracterizam indiscutivelmente a
diferença fundamental entre as duas antropologias. Como conclusão, ainda sobre
o divertimento, observaríamos que "a
antropologia do divertimento e as análises novas e decisivas que a ela estão
ligadas constituem uma reflexão propriamente original e totalmente elaborada
(...)". Consideraríamos, enfim, a possibilidade de
ir além, esboçando uma eventual tensão, ou até mesmo uma verdadeira
incompatibilidade entre o projeto apologético, tal qual a primeira antropologia
o autoriza, e outras reflexões antropológicas de um "último" Pascal:
(...)
não é certo que o projeto apologético inicial de Pascal, fundamentado na
oposição das filosofias à verdadeira religião e na antropologia da dualidade
grandeza e miséria tenha sido capaz de integrar, sem dificuldades problemáticas
maiores, as reflexões bem diferentes nascidas (...) da constituição de uma
antropologia fenomenológica bem mais original.
Que
reflexões? Elas correspondem ao que Emmanuel Martineau chamou de "discursos da existência humana",
ou o "quarteto da existência humana",
quarteto dos conceitos fundamentais pelos quais Pascal começa a pensar pela primeira
vez em filosofia a existência humana em sua finitude: glória, imaginação, justiça, força e divertimento. Que nos seja
permitido, pelo menos provisoriamente, empregar um conceito heideggeriano para
nomear o trabalho filosófico – antropológico – novo que se realiza nesses
textos: Pascal elabora nada menos que uma analítica existencial. "A miseria e dignitas
hominis acaba verdadeiramente", diz Emmanuel Martineau,
"assim que o olhar filosófico se apodera, mais que de sua 'dialética' ou
de seu 'paradoxo' (A.P.R. A 131b), de seu co-pertencimento ao seio de uma
finitude.
Em Pascal
et la philosophie – que nos seja permitido citarmo-nos uma última vez – propúnhamos,
pois, uma caracterização negativa da hipótese de uma segunda antropologia, que
visava designar as reflexões pascalianas que não poderiam entrar na
problemática secular da verdadeira religião, por mais renovada que fosse sua
expressão em Pascal. Os cinco critérios da primeira antropologia que acabamos
de expor permitem simplesmente sistematizar a caracterização negativa da
segunda antropologia. Sustentamos, com efeito, que não poderíamos encontrar
nenhum dos cinco critérios nas análises que Pascal consagra aos conceitos
fundamentais que acabamos de indicar.
Com efeito,
1.
O
desaparecimento da consideração da grandeza salta aos olhos. Ao mesmo tempo,
desaparece a miséria no sentido da primeira antropologia. Quando dois conceitos
formam um par, o desaparecimento de um deles acarreta necessariamente o do
outro. O divertimento, por exemplo, não poderia ser subsumido sem precaução sob
o antigo conceito de miséria. Observaremos ainda, a título de simples indicador
terminológico, que La 136, esse longo fragmento sobre o divertimento, não
fornece nenhuma ocorrência de "miséria" (no singular). Observaremos
também que o título inicial de La 136, "Miséria do homem", foi
rasurado por Pascal em proveito justamente de "divertimento". Para supor que o divertimento pudesse ser concebido como
miséria, ou subsumido sob o conceito de miséria, seria preciso pensar uma
miséria sem grandeza, o que, com relação ao tópico da primeira antropologia, é
desprovido de sentido. A análise do divertimento é fascinante
na medida em que não obedece mais a pares conceituais: miséria sem grandeza (na
ambivalência de que o que nos consola de nossas misérias é a maior miséria, La
414) ou – ainda retornaremos a esse ponto – divertimento sem conversão. Enfim,
ela não obedece mais ao conceito de paradoxo. A razão está justamente na análise
puramente fenomenal que Pascal opera.
2. A
segunda antropologia não é governada por qualquer princípio teológico.
Observaremos assim que o fragmento La 136, para conservar o mesmo exemplo
decisivo, não opõe nunca o divertimento à busca por Deus, ou seja, à conversão:
a antiga oposição – etimológica e agostiniana –convesio/aversio (mais do
que diversio, aliás), converter-se/divertir-se, não tem mais lugar. O divertimento é analisado por ele mesmo, não é mais oposto
à conversão, o mundo não é mais oposto a Deus. A consideração de Deus é
totalmente ausente do bloco "Divertimento". Os próprios temas da
segunda antropologia, começando por "Da glória", são totalmente
profanos. Ela não tem outro fundamento além da pertinência de suas próprias
descrições. O pensamento do homem como paradoxo foi substituído pelo do homem
em sua finitude.
4.
A
antropologia não é mais colocada a serviço explícito de uma apologética, mas
ela é o fim mesmo da análise pascaliana. A segunda antropologia é, pois,
inteiramente des-teologizada: a teologia não está nem em seu princípio, nem em
seu fim como apologética. Como teria dito Montaigne, Pascal não escreve mais
"teologalmente". Seu propósito é bem outro.
5.
Pascal
considera aí não somente o homem, mas os homens em suas determinações
concretas, existenciais, propriamente em sua existência e não somente em função
de uma natureza humana, ainda que contraditória. Por isso também a segunda
antropologia poderia legitimamente gabar-se de estar na origem da sociologia,
já que ela coloca no princípio de alguns parágrafos um sistema de diferenças
entre os homens.
Naturalmente,
porém, uma caracterização positiva da segunda antropologia se impõe. Cada um
dos conceitos fundamentais da segunda antropologia requer um estudo preciso.
Parece-nos que tais estudos só poderiam ser feitos de um ponto de vista
fenomenológico, o mesmo que Pascal impõe sem o que estaremos impossibilitados
de apreender tanto a força quanto a novidade de seu propósito, no que ele tem
de mais decisivo. Tal estudo foi tentado, por exemplo, por Jean-Luc Marion a respeito do conceito de tédio como o que
determina originalmente a condição mundana do homem, a partir da análise
heideggeriana do tédio em seu curso do semestre do inverno de
1929-1930, Die Grundbegriff der Metaphysik, em
particular o capítulo IV da primeira parte, "Der dritte Form der Langweile:
die tiefe Langweile als das 'es ist einem langweilig'". Está bastante
claro que as análises heideggerianas permitem, enfim, ler o que, no
entanto, se encontrava já em Pascal, mas que não conseguíamos ver. Isso não é
menos verdadeiro também para o próprio conceito de mundo, que não abordarei.
Não nos interessaremos senão pelo conceito de pensamento. Em vez de tratarmos
aqui de um dos temas da segunda antropologia (glória, imaginação, justiça e
força, divertimento) por ele mesmo, o que excederia os limites da presente
comunicação, gostaríamos de tomar dois exemplos da maneira pela qual se inicia
a segunda antropologia. Entendamos bem "se inicia": gostaríamos de
tentar colocar em evidência como, a partir de começos cartesianos (e
montaignianos) idênticos ou análogos, a segunda antropologia toma seu próprio
impulso. Interessar-nos-emos, pois, pela segunda antropologia in statu
nascendi, no preciso momento em que o pensamento pascaliano se emancipa de
seu incipit cartesiano ou montaigniano, não mais por um efeito de
deslocamento ou de subversão conceitual, mas para deixar desenvolver-se uma
análise descritiva, propriamente existencial. Contudo, sobre essa própria
análise existencial, a presente comunicação permanecerá essencialmente
programática.
Feito
isso, poderemos entrever como as análises pascalianas da glória, do
divertimento, da imaginação etc. são governadas por uma problemática comum. A
segunda antropologia se elabora a partir de um mesmo tipo de trabalho sobre a
exterioridade e sobre a intersubjetividade imaginária. Que é ser fora de si?
Que é ser em outrem? As reflexões da segunda antropologia fazem aparecer o
pensamento como alienação voluntária.
Fonte:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2006000200007&script=sci_arttext&tlng=en.
A partir do artigo de:
Vincent Carraud
Universidade de Caen
(França)
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