1. A última tentativa da razão é
reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á
fraca se não chegar a conhecer isso. É preciso saber duvidar onde é preciso,
afirmar onde é preciso, e submeter-se onde é preciso. Quem não faz assim não
entende a força da razão. Há os que pecam contra esses três princípios, ou
afirmando tudo como demonstrativo, não precisando ser conhecido por
demonstrações; ou duvidando de tudo, não precisando saber onde é necessário,
submeter-se; ou submetendo-se a tudo, não precisando saber onde é necessário
julgar.
2. Se se submete tudo à razão, a nossa
religião nada terá de misterioso nem de sobrenatural. Se se contrariam os
princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula. A razão, diz
Santo Agostinho, nunca se submeteria, se não julgasse que há ocasiões em que
deve submeter-se. É, pois, justo que se submeta quando julga que deve
submeter-se.
3. A piedade é diferente da superstição.
Sustentar a piedade até à superstição é destruí-la. Os hereges nos acusam dessa
submissão supersticiosa. É fazer aquilo de que nos acusam (exigir essa
submissão nas coisas que não são matéria de submissão).
4. Não há nada tão conforme à razão como a
retratação da razão (nas coisas que são de fé e nada tão contrário à razão como
a retratação da razão nas coisas, que não são de fé). Dois excessos: excluir a
razão, só admitir a razão.
5. Diz bem a fé o que não dizem os
sentidos, mas não o contrário do que vêem estes. Ela está acima e não em
oposição.
6. Se eu tivesse visto um milagre, dizem
eles, converter-me-ia. Como afirmam que fariam o que ignoram? Supõem que essa
conversão consista numa adoração que se faz de Deus como um comércio e uma
conversão tal como a imaginam. A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se
diante desse Ser universal que tantas vezes tem sido irritado e que pode
perder-vos legitimamente a todo momento; em reconhecer que não se pode nada sem
ele, e que nada se mereceu dele senão a perda de sua graça. Consiste em
conhecer que há uma oposição invencível entre Deus e nós, e que, sem um
mediador, não pode haver comércio.
7. Não vos admireis de ver pessoas simples
crer sem raciocínio. Deus lhes dá o amor a ele e o ódio a si mesmo.
Inclina-lhes o coração a crer.
8. Nunca se crerá com uma crença útil e de
fé se Deus não inclina a isso o coração; crer-se-á desde que ele o incline. É o
que bem conhecia Davi quando dizia: inclina cor meum, Deus, in testimonia tua(9) (Salmo CXIX, 36).
9. Os que crêem sem ter lido os
Testamentos é porque têm uma disposição interior tão santa que o que ouvem
dizer da nossa religião lhe é conforme. Sentem que um Deus os fez. Só querem
amar a Deus, só querem odiar a si mesmos. Sentem que não têm por si mesmos a
força para isso, que são incapazes de ir a Deus e que, se Deus não vem a eles,
não podem ter nenhuma comunicação com ele. E ouvem dizer, em nossa religião,
que é preciso amar somente a Deus e odiar somente a si mesmo; mas, sendo todos
corrompidos e incapazes de Deus, Deus se fez homem para unir-se a nós. Não é
preciso mais para persuadir homens que têm essa disposição no coração e que têm
esse conhecimento do seu dever e de sua incapacidade.
10. Os que vemos tornarem-se cristãos sem o
conhecimento das profecias e das provas não deixam de julgá-las tão bem quanto
os que têm esse conhecimento. Julgam-nas pelo coração, como os outros as julgam
pelo espírito. É o próprio Deus que os inclina a crer, e assim estão eles muito
eficazmente persuadidos.
11. Confesso que um desses cristãos que
crêem sem provas não terá, talvez, com que convencer um infiel que lhe alegar
tal coisa. Mas, os que conhecem as provas da religião provarão sem dificuldade
que esse fiel é verdadeiramente inspirado por Deus, embora não possa prová-lo
ele próprio.
FONTE www.ebooksbrasil.com