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quinta-feira, 12 de novembro de 2020

TERCEIRO DISCURSO SOBRE A CONDIÇÃO DOS GRANDES

 


Terceiro Discurso**

Quero vos fazer conhecer, senhor, vossa verdadeira condição; pois esta é a coisa do mundo que as pessoas de vossa sorte mais ignoram. Que é, em vossa opinião, ser um grande senhor?[1] É ser senhor de vários objetos da concupiscência dos homens, e assim poder satisfazer às necessidades e aos desejos de vários. São essas necessidades e esses desejos que os atraem para perto de vós e que fazem com que eles se submetam a vós: sem isso eles nem sequer vos olhariam; mas eles esperam, por esses serviços e essas deferências que vos rendem, obter de vós qualquer parte desses bens que desejam e os quais vêem que dispondes.

Deus é rodeado por pessoas cheias de caridade, que lhe demandam os bens da caridade que estão em seu poder: assim, ele é propriamente o rei da caridade.

Vós sois do mesmo modo rodeado por um pequeno número de pessoas, sobre as quais reinais de vossa maneira. 

Essas pessoas são cheias de concupiscência. Elas vos solicitam os bens da concupiscência; é a concupiscência que as liga a vós. Sois, portanto, propriamente um rei da concupiscência. 

Vosso reino é pouco extenso; mas nisso sois igual aos maiores reis da terra: eles são, como vós, reis da concupiscência. É a concupiscência que faz a força deles, isto é, a possessão das coisas que a cupidez dos homens deseja. 

Mas, conhecendo vossa condição natural, usai dos meios que ela vos dá, e não pretendei reinar por outra via que por aquela que vos faz um rei. Absolutamente não é vossa força e vosso poder natural que a vós sujeita todas essas pessoas. Portanto, não pretendei, absolutamente, dominá-las pela força, nem as tratar com dureza. Contentai seus justos desejos; satisfazei suas necessidades; tenhai prazer em ser beneficente; adiantai-vos a eles tanto quanto podeis, e agireis como verdadeiro rei da concupiscência. 

O que vos digo não vai muito longe; e se permanecerdes aí, não deixareis de vos perder; mas, pelo menos, vós vos perdereis como honnête homme. Há pessoas que se danam tão tolamente, pela avareza, pela brutalidade, pelos excessos, pela violência, pelos desatinos, pelas blasfêmias! O meio que vos abro é sem dúvida mais honesto; mas em verdade existe sempre uma grande loucura com que se danar; e é por causa disso que não é preciso permanecer aí. É preciso desprezar a concupiscência e seu reino, e aspirar a esse reino de caridade onde todos os sujeitos somente respiram a caridade e somente desejam os bens da caridade. Outros que eu vos dirão o caminho desse reino: basta-me vos ter desviado dessas vias brutais em que vejo que várias pessoas de vossa condição se deixam levar por não conhecer bem o estado verdadeiro dessa condição.



[1] Seigneur: titulação de nobreza, própria do antigo regime. Quem é seigneur, é também maître, mas este último não necessariamente possui um título nobiliário.

Nota:

**No Terceiro Discurso, o mais importante e o mais decisivo dos três, a esfera da política fica inteiramente absorvida pelo reino da concupiscência, enquanto, num mundo perfeito, para o Reino da caridade. nenhum vínculo relaciona a Política com a Religião. Por mais que o regente desse mundo inferior cumpra os seus deveres, obedecendo aos critérios de justiça e necessidade, de bem feitoria e progresso, nada mais alcançará senão uma certa dignidade exterior, uma formalidade, talvez um prestígio merecido... [...] (RUAS, 2003, p. 174). Desta forma, Pascal "admoesta o dignitário a não se deixar levar pela licenciosidade e pelas oportunidades que tem de satisfazer a a todas as suas inclinações por causa de sua posição e de seus bens, esquecendo que sua grandeza deve estar a serviço dos outros e não a serviço de seus próprios caprichos e desregramentos, levando ao desprezo e ao abandono daqueles que lhe são submissos" (SILVA, 2012, p. 125).

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Referencias 

SILVA, Antônio G. da. Pascal: Cientista e Filósofo Místico. – São Paulo: Lafonte, 2012. 151p. (Coleção pensamentos & vida; v, 9).
RUAS, Henrique Barrilardo. Comentários aos três discursos. In. PASCAL, Blaise. do espírito geométrico e da arte de persuadir. Seleção, tradução e notas de H.B.R. Portugal: Editora Elementos Sudoeste, 2003.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças - Blaise Pascal

  
                                                     Blaise Pascal (1623 - 1662)


Trad. Andrei Venturini Martins 

[I] (362a) – Senhor, cujo espírito é tão bom e tão doce em todas as coisas, e que sois tão misericordioso, que não somente as prosperidades, mas mesmo as desgraças que acontecem com vossos eleitos, são os efeitos de vossa misericórdia, concedei-me a graça de não agir como pagão no estado onde vossa justiça me submeteu: que como um verdadeiro Cristão eu vos reconheça como meu pai e meu Deus, em qualquer estado que me encontre, já que a mudança da minha condição não causa a vossa, porque vós sois sempre o mesmo, embora eu esteja sujeito à mudança, e vós não sois menos Deus quando afligis e punis do que quando consolais e usais de indulgência. 

[II] (362ab) – Me destes a santidade para vos servir, e dela fiz uso totalmente profano. Enviai-me agora a doença para me corrigir: não permitais que eu use dela para vos irritar com minha impaciência. Eu usei mal da minha saúde, e por isto me tendes punido justamente. Não tolereis que eu use mal de vossa punição. E, já que a corrupção da minha natureza é tal que me torna vossos favores perniciosos, concedei, ó meu Deus, que vossa graça toda poderosa torne vossos castigos salutares. Se eu tive o coração pleno de afeição ao mundo enquanto ele teve algum vigor, aniquilai este vigor para minha salvação, e tornai-me incapaz de desfrutar do mundo, seja por fraqueza do corpo, seja por zelo da caridade, para somente desfrutar de vós. 

[III] (362b-363a) – Ó Deus, diante de quem eu devo prestar uma conta exata de todas as minhas ações ao fim de minha vida e ao fim do mundo! Ó Deus, que não deixais subsistir o mundo e todas as coisas do mundo, senão para exercitar vossos eleitos ou para punir os pecadores! Ó Deus, que deixais os pecadores endurecidos no uso prazeroso e criminoso do mundo! Ó Deus, que fazeis morrer nosso corpo e, na hora da morte, desligais nossa alma de tudo aquilo que ela amava no mundo! Ó Deus, que me arrancais neste momento de minha vida de todas as coisas às quais me liguei e onde coloquei meu coração! Ó Deus, que deveis consumar no último dia o céu e a terra, e todas as criaturas que eles contêm, para mostrar a todos os homens que nada subsiste senão vós, e que assim nada é digno de amor senão vós, já que nada é durável senão vós! Ó Deus, que deveis destruir todos estes ídolos vãos e todos estes funestos objetos de nossas paixões! Eu vos louvo, meu Deus, e vos bendirei todos os dias de minha vida, porque vos agradou antecipar aquele dia espantoso em meu favor, destruindo todas as coisas a meu respeito, na fraqueza em que me sujeitastes. Vos louvo, meu Deus, e vos bendirei todos os dias da minha vida, porque foi de vosso agrado sujeitar-me à incapacidade de desfrutar das doçuras da saúde e dos prazeres do mundo, e porque aniquilastes, de alguma forma para meu proveito, os ídolos enganosos, estes que aniquilareis efetivamente para a confusão dos maus no dia de vossa cólera. Concedei Senhor, que eu julgue a mim mesmo depois desta destruição que promoveste a meu respeito, a fim de que não me julgueis vós mesmo depois da total destruição que fareis da minha vida e do mundo. Porque, Senhor, dado que no instante de minha morte me encontrarei separado do mundo, desnudado de todas as coisas, somente em vossa presença, para responder à vossa justiça por todos os movimentos do meu coração, concedei que eu me considere nesta doença como em uma espécie de morte, separado do mundo, desnudado de todos os objetos de meus apegos, somente em vossa presença, para implorar de vossa misericórdia a conversão de meu coração; e que assim eu tenha um consolo extremo disto que vós me enviais agora, uma espécie de morte para exercer vossa misericórdia, antes que vós me envieis efetivamente a morte para exercer vosso julgamento. Concedei, portanto, ó meu Deus, que do mesmo modo que antecipastes minha morte, que eu antecipe o rigor de vossa sentença, e examine a mim mesmo antes de vosso julgamento, para encontrar misericórdia em vossa presença. 

[IV] (363ab) – Concedei, ó meu Deus, que eu adore em silêncio a ordem de vossa providência adorável sobre a conduta da minha vida; que vosso flagelo me console e, tendo vivido no amargor de meus pecados durante a paz, que eu saboreie as doçuras celestes de vossa graça durante os males salutares com que vós me afligis. Porém eu reconheço, meu Deus, que meu coração está tão endurecido e cheio de ideias, de preocupações, de inquietudes e de apegos do mundo, que a doença não mais que a saúde, nem os discursos, nem os livros, nem vossas Escrituras sagradas, nem vosso Evangelho, nem vossos mistérios mais santos, nem as esmolas, nem os jejuns, nem as mortificações, nem os milagres, nem o uso dos Sacramentos, nem o sacrifício de vosso Corpo, nem todos meus esforços, nem aqueles de todo o mundo conjuntamente, não podem fazer absolutamente nada para começar minha conversão, se vós não acompanhais todas estas coisas de uma assistência totalmente extraordinária de vossa graça. É por este motivo, meu Deus, que eu me dirijo a vós, Deus todo poderoso, para vos pedir um dom que todas as criaturas conjuntamente não podem me conceder. Eu não teria a ousadia de vos dirigir meus gritos, se qualquer outro pudesse atendê-los. Porém, meu Deus, como a conversão do meu coração, a qual vos peço, é uma obra que ultrapassa todos os esforços da natureza, não posso me dirigir senão ao autor e mestre todo poderoso da natureza e do meu coração. A quem gritarei, Senhor, a quem recorrerei, se não for a vós? Tudo aquilo que não é Deus não pode preencher minha expectativa. É o próprio Deus que eu peço e procuro, e é a vós somente, meu Deus, para quem me dirijo para vos obter. Abri meu coração, Senhor, entrai neste lugar rebelde que os vícios ocuparam. Eles o mantêm submisso; entrai nele como em uma casa forte; porém, amarrai, inicialmente, o forte e potente inimigo que a domina e tomai em seguida os tesouros que nela estão. Senhor, tomai minhas afeições que o mundo tinha roubado; roubai vós mesmo este tesouro, ou melhor, retomai-o, já que é a vós que ele pertence, como um tributo que eu vos devo, já que vossa imagem está impressa no tesouro. Vós nele tínheis a sua imagem modelada, Senhor, no momento de meu batismo que é meu segundo nascimento, mas ela está totalmente apagada. A ideia do mundo está tão gravada neste tesouro que a vossa não é mais cognoscível. Só vós pudestes criar minha alma: só vós podeis criá-la de novo. Só vós pudestes modelar vossa imagem nela: só vós podeis modelá-la de novo e nela reimprimir vosso retrato apagado, isto é, Jesus Cristo meu Salvador, que é vossa imagem e o carácter de vossa substância. 

[V] (363b) – Ó meu Deus, um coração é feliz quando pode amar um objeto tão encantador que não o desonre de modo algum e cujo apego lhe seja tão salutar! Sinto que eu não posso amar o mundo sem vos desagradar, sem me prejudicar e sem me desonrar e, entretanto, o mundo é objeto de minhas delícias. Ó meu Deus, uma alma é feliz quando vós sois as delícias, já que ela pode abandonar-se para vos amar, não somente sem escrúpulo, mas ainda com mérito! A felicidade da alma é firme e durável, já que sua espera não será frustrada de modo algum, porque vós não sereis destruído jamais, e nem a vida, nem a morte, jamais separarão a felicidade do objeto de suas delícias; ao mesmo tempo, [vós sois aquele] que arrastará os maus com seus ídolos dentro de uma ruína comum, unirá os justos convosco em uma glória comum; e do mesmo modo que uns perecerão com os objetos perecíveis aos quais estão apegados, outros subsistirão eternamente no objeto eterno e subsistente por si mesmo ao qual estão estreitamente unidos. Oh! Que felicidade estão aqueles que com uma liberdade total e uma inclinação invencível de sua vontade amam perfeitamente e livremente aquele que eles são obrigados a amar necessariamente! 

[VI] (363b) – Completai, ó meu Deus, os bons movimentos que vós me dais. Sede o fim deles como sois o princípio. Coroai vossos próprios dons, porque eu reconheço que estes são vossos dons. Sim, meu Deus, e bem longe de pretender que minhas preces tenham mérito que vos obrigue a concedê-las necessariamente, reconheço humildemente que, eu, tendo voltado às criaturas meu coração, que vós não tínheis moldado senão para vós, e não para o mundo, nem para mim mesmo, não posso esperar nenhuma graça senão de vossa misericórdia, já que não tenho nada em mim que possa obrigá-lo a isto [a concedê-la], e todos os movimentos naturais do meu coração, encaminhando-se em direção às criaturas ou a mim mesmo, só podem vos irritar. Portanto, vos agradeço, meu Deus, pelos bons movimentos que me dais, e mesmo por este que me dais, de poder agradecê-Lo. 

[VII] (363b-363a) – Tocai meu coração para o arrependimento de minhas faltas, já que, sem esta dor interior, os males exteriores, pelos quais tocais meu corpo, serão uma nova ocasião de pecado. Concedei-me conhecer bem que os males do corpo não são outra coisa senão a punição e a figura conjunta de todos os males da alma. Porém Senhor, concedei também que eles [os males do corpo] sejam o remédio da alma, me fazendo considerar, nas dores que sinto, aquela que não sentia em minha alma, embora toda doente e coberta de úlceras, já que, Senhor, a maior das doenças da alma é a insensibilidade e aquela extrema fraqueza que havia retirado dela [da alma] todo sentimento de suas próprias misérias. Fazei-me senti-las [as misérias] vivamente, e que a vida que me resta seja uma penitência contínua para lavar as ofensas que cometi. 

[VIII] (364a) – Senhor, embora minha vida passada tenha sido isenta de grandes crimes, de cujas ocasiões vós me distanciastes, ela foi para vós, entretanto, muito odiosa pela negligência contínua, pelo mal uso de vossos mais augustos sacramentos, pelo desprezo de vossas palavras e de vossas inspirações, pela ociosidade e a inutilidade total de minhas ações e de meus pensamentos, pela perda de todo tempo que vós não me tínheis dado senão para vos adorar, para procurar em todas as minhas ocupações os meios de vos agradar, e para fazer penitência pelas faltas que se cometem todos os dias, e que são ordinárias mesmo para os mais justos, de maneira que a vida deva ser uma penitência contínua sem a qual estamos em perigo de decair de sua justiça. Desta maneira, meu Deus, sempre fui contrário a vós. 

[IX] (364a) – Sim, Senhor, até aqui sempre fui surdo às vossas inspirações: desprezei vossos oráculos, julguei de forma contrária àquela com a qual vós julgais, eu contradisse as santas máximas as quais vós trouxestes ao mundo desde o seio de vosso Pai eterno, e segundo as quais julgareis o mundo. Dissestes: “Bem-aventurados são aqueles que choram, e desgraçados aqueles que são consolados”. E eu disse: “Desgraçados aqueles que gemem, e felizes aqueles que são consolados”. Eu disse: “Felizes aqueles que gozam de uma vantajosa fortuna, de uma reputação gloriosa e de uma saúde robusta”. E por que os reputei felizes, senão porque todas estas vantagens lhes forneciam uma facilidade muito ampla de desfrutar das criaturas, isto é, de vos ofender? Sim, Senhor, confesso que estimei a saúde um bem, não porque ela é um meio fácil de servir-vos com utilidade e para consumar mais cuidados e vigílias a vosso serviço, nem para a assistência do próximo, mas porque, a favor dela [saúde] eu podia abandonar-me com menos comedimento na abundância das delícias da vida e melhor desfrutar dos seus funestos prazeres. Concedei-me a graça, Senhor, de reformar minha razão corrompida e de conformar meus sentimentos aos vossos. Que eu me estime feliz na aflição e que, na impotência de agir exteriormente, purifiqueis de tal forma meus sentimentos que eles não repugnem mais aos vossos, e que assim vos encontre dentro de mim, já que não posso procurar-vos fora por causa de minha fraqueza. Porém, Senhor, vosso Reinado está em vossos fiéis, e o encontrarei dentro de mim, se nele eu encontro vosso Espírito e vossos sentimentos. 

[X] (364ab) – Porém, Senhor, que farei para vos agradecer por difundir vosso Espírito sobre esta miserável terra? Tudo aquilo que sou vos é odioso e não encontro nada em mim que vos possa agradar. Eu não vejo nada em mim [que vos possa agradar], Senhor, só minhas dores que têm alguma semelhança com as vossas. Portanto, considerai os males que sofro e aqueles que me ameaçam. Vede com um olho de misericórdia os flagelos que vossa mão me tem feito, ó meu Salvador, que amastes vossos sofrimentos até a morte! Ó Deus, que não vos fizestes homem senão para sofrer mais que qualquer homem para salvação dos homens! Ó Deus, que não vos encarnastes depois do pecado dos homens e que não tomastes um corpo senão para sofrer nele todos os males que nossos pecados mereceram! Ó Deus, que amais tanto os corpos que sofrem, que escolhestes para vós o corpo mais devastado de sofrimento que jamais tinha estado no mundo! Tende [como] agradável meu corpo, não por ele mesmo, nem por tudo aquilo que ele contém, pois tudo nele é digno de vossa cólera, mas pelos males que ele suporta, que só podem ser dignos de vosso amor. Amai meus sofrimentos, Senhor, e que meus males vos convidem a me visitar. Porém, para concluir a preparação de vossa morada, concedei, ó meu Salvador, que se meu corpo tem isto [os sofrimentos] em comum com o vosso, que ele sofra por minhas ofensas, e que se minha alma tenha também isto em comum com a vossa, que ela esteja na tristeza pelas mesmas ofensas; e que assim eu sofra convosco, e como vós, no meu corpo e na minha alma, pelos pecados que cometi. 

[XI] (364b) – Senhor, concedei-me a graça de acrescentar vossas consolações aos meus sofrimentos, a fim de que eu sofra como Cristão. Não peço para ser isento das dores, pois esta é a recompensa dos santos: mas peço para não ser abandonado às dores da natureza sem as consolações do vosso Espírito, pois esta é a maldição dos Judeus e dos Pagãos. Não peço para ter uma consolação plena sem nenhum sofrimento, pois esta é a vida na glória. Não peço também para estar na plenitude dos males, sem consolação, pois este é um estado do Judaísmo. Mas peço, Senhor, de sentir conjuntamente as dores da natureza por meus pecados e as consolações de vosso Espírito por vossa graça, pois este é o verdadeiro estado do Cristianismo. Que eu não sinta as dores sem consolação, mas que sinta dores e consolo ao mesmo tempo, para chegar, enfim, a não sentir mais senão vosso consolo sem nenhuma dor. Porém, Senhor, tendes deixado esmorecer o mundo nos sofrimentos naturais sem consolação antes da vinda do vosso Filho único; agora vós consolais e aliviais os sofrimentos de vossos fiéis pela graça de vosso Filho único; e [enfim] preencheis com uma beatitude totalmente pura vossos santos na glória de vosso Filho único. Estes são os admiráveis degraus pelos quais conduzis vossas obras. Me tirastes do primeiro: concedei-me passar pelo segundo, para chegar ao terceiro. Senhor, é a graça que vos peço. 

[XII] (364b-365a) – Não permitais que eu esteja em tal distanciamento de vós, que possa considerar vossa alma triste até a morte e vosso corpo abatido pela morte por meus próprios pecados, sem me alegrar de sofrer tanto no meu corpo quanto na minha alma. Pois, que há de mais vergonhoso e, entretanto, de mais comum nos Cristãos e em mim mesmo que, enquanto vós suais sangue para a expiação de nossas ofensas, vivemos nas delícias [?]; e que Cristãos fazem voto de estar convosco, senão aqueles que pelo batismo renunciaram o mundo para vos servir, senão aqueles que juraram solenemente, à frente da Igreja, de viver e de morrer convosco, senão aqueles que fazem voto de acreditar que o mundo vos perseguiu e crucificou, senão aqueles que acreditam que vós vos expusestes à cólera de Deus e à crueldade dos homens para remi-los de seus crimes [?] – só estes, digo, que creem em todas estas verdades, que consideram Vosso corpo como a hóstia que se entregou para salvação deles, que consideram os prazeres e os pecados do mundo como o único motivo dos Vossos sofrimentos, e o mundo mesmo como Vosso carrasco, procuram, para lisonjear seu corpo, estes mesmos prazeres, em meio a este mesmo mundo –; e como estes, que não poderiam, sem fremir de horror, ver um homem acariciar e querer bem o assassino de seu pai que se entregaria para dar a vida a ele [ao filho], podem viver como eu fiz, com plena alegria, entre o mundo que sei ter sido verdadeiramente o assassino daquele que reconheço por meu Deus e meu Pai, que se entregou para minha própria salvação e que carregou em sua pessoa a pena de minhas iniquidades? É justo, Senhor, que tenhais interrompido uma alegria tão criminosa como aquela na qual eu repousava na sombra da morte. 

[XIII] (365ab) – Portanto, retirai de mim, Senhor, a tristeza, que o amor por mim me poderia dar, dos meus próprios sofrimentos, e pelas coisas do mundo, que não alcançam a medida das inclinações de meu coração e não atentam à vossa glória, porém, colocai em mim uma tristeza conforme à vossa. Que meus sofrimentos sirvam para apaziguar vossa cólera. Concedei nisto uma ocasião para minha salvação e para minha conversão. Que, de hoje em diante, eu não deseje saúde e vida senão a fim de empregá-las e dá-las a vós, convosco e em vós. Não vos peço nem saúde, nem doença, nem vida, nem morte, mas que vós disponhais de minha saúde e de minha doença, de minha vida e de minha morte, para vossa glória, para minha salvação e para a utilidade da Igreja e de vossos santos, dos quais espero por vossa graça fazer parte. Só vós sabeis aquilo que me é conveniente: sóis o soberano mestre, concedei aquilo que quiserdes. Dai-me, retirai-me, mas conformai a minha vontade à vossa; e que, em uma submissão humilde e perfeita, e em uma santa confiança, me disponho a receber as ordens de vossa providência eterna, e que eu adore igualmente tudo aquilo que me vem de vós.

 [XIV] (365b) – Meu Deus, concedei que, em uma uniformidade de espírito sempre igual, eu receba todas as formas de acontecimentos, já que nós não sabemos aquilo que devemos pedir, e que, por este motivo, não posso desejar um [acontecimento] antes do outro sem presunção, e sem me tornar juiz e responsável das consequências que vossa sabedoria quis justamente me esconder. Senhor, sei que eu só sei uma coisa: que é bom vos seguir e que é mal vos ofender. Depois disso, não sei o que é o melhor ou o pior em todas as coisas. Não sei o que me é proveitoso da saúde ou da doença, dos bens ou da pobreza, nem de todas as coisas do mundo. É um discernimento que ultrapassa a força dos homens e dos anjos, e que está escondido nos segredos de vossa providência que adoro e que não quero aprofundar. 

[XV] (365b) – Portanto, concedei Senhor, que tal como eu seja, que me conforme à vossa vontade; e que, estando doente como estou, vos glorifique nos meus sofrimentos. Sem eles não posso chegar à glória; e mesmo vós, meu Salvador, nela [à glória] não tendes querido chegar senão por eles [sofrimentos]. É pelas marcas de vossos sofrimentos que vós fostes reconhecido por vossos discípulos, e é também pelos sofrimentos que vós reconheceis aqueles que são vossos discípulos. Reconhecei-me então como vosso discípulo nos males que eu suporto tanto no meu corpo quanto no meu espírito pelas ofensas que cometi. E, já que nada é agradável a Deus se não lhe for oferecido por vós, uni minha vontade à vossa, e minhas dores àquelas que tendes sofrido. Concedei que as minhas tornem-se as vossas. Uni-me a vós; preenchei-me de vós e do vosso Espírito Santo. Entrai no meu coração e na minha alma para ali sofrer meus sofrimentos e para continuar a suportar em mim aquilo que vos resta sofrer em vossa Paixão, que vós findais em vossos membros até a consumação perfeita do vosso Corpo, a fim de que, estando pleno de vós, que não seja mais eu quem viva e quem sofra, mas que seja vós que vivais e sofrais em mim, ó meu Salvador: e que assim, tendo uma pequena parte dos vossos sofrimentos, vós me preenchais inteiramente da glória que eles vos condescenderam, na qual viveis com o Pai e o Santo Espírito, por todos os séculos dos séculos. Amém!

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MARTINS, Andrei Venturini. Prece para pedir a deus o bom uso das doenças. Revista Último Andar (ISSN 1980-8305), n. 26, 2015.  Clique aqui:

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O ESTOICISMO E O CETICISMO: AS DUAS VIAS FILOSÓFICAS PARA A CONSTRUÇÃO DO PARADOXO ENTRE GRANDEZA E MISÉRIA EM BLAISE PASCAL



Resumo 

Blaise Pascal é o filósofo do paradoxo, pois, para ele, a verdade é a reunião dos contrários. Em sua antropologia, o homem é analisado como um ser paradoxal, ao mesmo tempo grande e pequeno, fraco e forte, grande e mísero. Essas contradições estão presentes em todos os homens, mas, a maior parte dos filósofos ao longo da história do pensamento Ocidental enxergou apenas um dos lados, ou seja, baseou-se numa visão unilateral e limitada do homem. Este artigo tem como objetivo analisar as duas vias filosóficas, pelas quais Pascal constrói o paradoxo entre grandeza e miséria, como aspecto fundamental para o estudo e compreensão do homem. Para isso, ele se apoia especialmente em dois filósofos, Epiteto e Montaigne, mostrando que, a ‘verdade’ de cada corrente filosófica opera como desqualificadora da ‘verdade’ da outra. Mas, para Pascal a verdadeira compreensão do homem, está na reunião dessas duas dimensões contraditórias, ou seja, paradoxais. 

Palavras-chave: ser paradoxal; estoicismo e ceticismo; grandeza e miséria; paradoxo, compreensão do homem.

Para acessar o o artigo na íntegra, CLIQUE AQUI

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Blaise Pascal: um cristão devoto (séc. XVII)

Pascal viveu sucessivamente em Saint-Etienne, Paris (a partir dos oito anos), Rouen (aos dezesseis), depois retornou a Paris, onde levou uma vida rica e livre como homem, graças à herança de seu pai, que leva-o a ser considerado por alguns, com razão, como libertino.

Na realidade, Pascal, tendo se beneficiado de uma sólida educação cristã, é animado por uma fé fervorosa, em particular após sua leitura dos autores jansenistas, em 1646. Ele tinha então 23 anos e esse período pode ser considerado como primeira conversão. 

Depois segue um período "mundano", durante o qual ele se dedicou às ciências.  Em 1654, quando chegou perto da morte após um acidente de ônibus, na ponte de Neuilly. 

Ele então teve uma visão religiosa, uma êxtase que ele descreveu nessas famosas palavras do Memorial: Fogo. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos ou dos estudiosos [...] Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz. Alegria, alegria, alegria, lágrimas de alegria. que ele costura no casaco. Ele então multiplicou retiros espirituais no convento de Port Royal.

Depois dos 35 anos, Pascal experimentou sérios problemas de saúde, em special dores de estômago e dores de cabeça, posteriormente diagnosticados como provenientes de insuficiência renal crônica e danos cerebrais, de origem genética. 

Em 1662, ele teve convulsões e morreu em Paris. É nesse ponto que se encontra em seus objetos pessoais feixes de folhas nas quais foram observadas reflexões, classificadas em uma ordem provisória. Eles são publicados e o trabalho assim composto, Pensées de Pascal, rapidamente se torna um sucesso de livraria.

Da mesma forma, foi apenas um século após sua morte que outra obra fundamental de Pascal foi publicada: Sobre o espírito geométrico e a arte da persuadir, que se tornara um clássico da filosofia matemática.

De fato, do ponto de vista literário, os únicos textos publicados durante sua vida são as Provinciais , uma série de cartas nas quais ele defende o jansenismo e critica a casuística dos jesuítas. Essas cartas, com um humor sutil e feroz, deliciam toda Paris e exercem uma profunda influência sobre Montesquieu, que reterá o processo para suas Lettres persanes, ou Rousseau.

Mas são os Pensamentos que permanecerão para a posteridade como obra-prima desse gênio versátil, que soube ser ao mesmo tempo teólogo, matemático, físico, inventor e filósofo. Eles constituem um clássico da literatura francesa e continuam a exercer uma forte influência na filosofia e na teologia.


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Fonte: clique aqui:

 

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Blaise Pascal e o pessimismo político


A história mundial não é nada além de uma série de catástrofes esperando pela catástrofe final.”
Emil Cioran


Lluvia de toros o “Disparate de toritos”, Francisco Goya


Por: Ricardo Mantovani*

Estados e governantes são parte de um grande castigo que se abate sobre a humanidade: eis uma tese que pode ser facilmente depreendida da filosofia de Pascal. Mas por que o pensador teria uma visão tão pessimista da política? Vejamos.

Blaise Pascal (1623-1662) foi um eminente cientista, tendo, dentre outros grandes feitos, inventado a máquina de calcular e desenvolvido o famoso cálculo das probabilidades. Aliás, Pascal foi um dos grandes nomes envolvidos na polêmica demonstração da existência do vácuo, fazendo frente àqueles que, na época, julgavam ser incompatível a existência do vazio absoluto com a existência de um Deus Todo-Poderoso e Todo-Criativo (mais ou menos como aqueles que, ainda hoje, julgam ser incompatível a existência divina com a existência do globo terrestre que, por conta disso, tentam, a todo custo, achatar, tornar plano…).

Quanto às teses filosóficas de Pascal, pode-se dizer que se encontram reunidas, quase todas, numa obra conhecida, atualmente, como Pensamentos: escrito inacabado, composto por mais de mil notas pessoais que, não fosse a morte prematura do autor, serviriam de base a uma Apologia da religião cristã. Que não se pense, contudo, que as ideias desenvolvidas nos Pensamentos calam fundo apenas naqueles que compartilham da fé do escritor. As investigações filosóficas de Pascal nunca pressupõem a aceitação de dogmas teológicos ou de inextricáveis teses metafísicas. Ao invés disso, o filósofo costuma iniciar seus arrazoados descrevendo um fenômeno prontamente detectável (como o amor-próprio que nos corrói a todos) ou, ainda, elaborando imaginativamente uma situação tão verossímil quanto possível. Ora, é precisamente desta última maneira que procede Pascal ao tentar responder uma das questões centrais da filosofia política, por conta da qual muita tinta foi gasta, sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII: como surgiram os primeiros Estados?

O pai do direito internacional moderno, Hugo Grotius (1583-1645), vê no homem um ser naturalmente sociável, que busca o convívio de seus semelhantes pelo mero prazer de sua companhia — e que, portanto, funda os primeiros corpos políticos simplesmente para dar uma vazão mais tranquila a seus instintos gregários. Thomas Hobbes (1588-1679), por seu turno, em seu famigerado Leviatã, assegura que, na ausência de qualquer poder político, a existência humana se desenrola de modo miserável e violento, já que, naturalmente, os indivíduos só se ocupariam de sua autopreservação. Ainda segundo Hobbes, é exatamente o ressentimento dos contínuos dessabores próprios a essa situação – na qual todos estão em guerra contra todos — que leva os homens a estabelecerem entre si um contrato que os coloca sob um poder comum, precisamente aquele do Estado, o qual é soerguido no intuito de mediar e pacificar suas relações.

Pois bem. Do ponto de vista de Pascal, é um erro acreditar que os Estados surgiram como uma decorrência espontânea de nossa pretensa sociabilidade — como quer Grotius — ou, ainda, como o fruto de um pacto voluntário e racional celebrado por um grupo de indivíduos — como gostaria Hobbes. Desmistifiquemos a origem dos corpos políticos: os Estados são filhos do combate, da conquista e da consequente subjugação dos vencidos.


Quando figura a situação que teria dado origem aos primeiros Estados, Pascal nos pinta um quadro violento, no qual vemos pequenas gangues (chamadas pelo filósofo de “partidos”) digladiando-se até que uns virem senhores e outros virem escravos. Todavia, Pascal nos chama a atenção para um fato nada desprezível: os vencedores da guerra fundadora não têm interesse em continuar sendo vistos como conquistadores violentos, apressando-se para “legitimar” o poder que se encontra em suas mãos.

É aí que o engodo toma conta da cena e os mitos começam a ser criados aos borbotões. De acordo com as ideologias que vão, aos poucos, sendo engolidas pelos dominados, os novos líderes não devem seus privilégios ao resultado contingente de um embate bélico, mas, por exemplo, à “pureza” de seu sangue, à superioridade de sua raça, ou, ainda, ao arbítrio inelutável de alguma divindade.

Mas como os governantes conseguem levar a cabo a tarefa de escamotear as raízes perversas de seu status? Pascal responde: através do espetáculo. Assim como os juízes e os médicos — que vestem roupas pomposas para fingir que têm uma ciência que, na realidade, estão longe de possuir —, os governantes, diz o filósofo, rodeiam-se de toda parafernália possível para, desta maneira, impressionarem o comum dos homens. Como poderiam os vulgos não se sentirem inferiores perante indivíduos fanfarrões, que dispõem de tantas riquezas, que têm à sua disposição tão espalhafatosas tropas ou que, como ocorre nas democracias modernas, gozam de tanto “apoio popular” (mesmo que este seja, eventualmente, forjado por algum instituto de pesquisa)? Se a força fundou os Estados, é definitivamente o marketing que os sustenta.

Levando em conta estas duras verdades, Pascal escreve uma pequena obra, os Três discursos sobre a condição dos grandes, em que se dedica à ingrata tarefa de preparar um futuro duque para os desafios que sua posição lhe trará. Neste texto, o filósofo, ao invés de prescrever ao jovem aristocrata as mais altas virtudes, limita-se a lembrar-lhe de que, ao fim e ao cabo, não é nem melhor nem pior do que aqueles que virá governar. Ainda que o povo vos tenha por um ser superior, diz Pascal, deveis recordar-vos de que, no limite, foram eventos acidentais que vos alçaram a tão alto patamar!

Realista como sempre, Pascal sabe que um conselheiro jamais conseguiria tornar virtuoso um político, tarefa deixada a cargo de santos homens ou, quiçá, da Graça. No entanto, o pensador não finaliza seu terceiro Discurso sem antes prescrever a seu pupilo que seja liberal para com seus súditos. Um governante cioso de seu posto deve, sempre que possível, distribuir bens e honrarias. Tal medida, certamente, não tornará seu governo justo — até porque, do ponto de vista pascaliano, um governo justo é algo humanamente impossível de ser construído. Não obstante, manter os corpos e os egos do povo alimentados evita as revoluções: e é precisamente disto que se trata, já que as convulsões sociais são o maior dos males que podem acometer uma sociedade.

Isto introduz o último ponto que gostaria de ressaltar do pensamento político pascaliano. Mesmo que os Estados sejam filhos da violência e vicejem graças à criação de mitos, Pascal não crê que possamos deles abdicar (como gostariam Bakunin e Rothbard) ou mesmo que possamos melhorá-los (como, em vão, tentaram os “deuses” das revoluções francesa e bolchevique). Os homens — governantes e governados — são podres e qualquer tentativa de instalar o Paraíso na Terra só intensificará seu odor nauseabundo. Caso não tivéssemos afrontado o Criador, ainda fruiríamos de sua paz. Hoje, entretanto, só nos resta aceitar, na medida de nossas forças, os desmandos da corja dominante que não faz senão nos aviltar. E que Deus nos dê paciência!
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MANTOVANI, Ricardo. Blaise Pascal e o pessimismo político. In: Estado da Arte (Revista de culturas, ideias e artes).Publicado em 21/05/2020. 

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* Ricardo Mantovani
Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani é Doutor em Filosofia pela USP. Coordenador e professor do curso de Pós-Graduação em Ética e Filosofia Política da Faculdade Paulo VI e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.