No
fragmento (B.72; L.199) dos Pensamentos, Pascal mostra que o conhecimento humano
só pode ser um conhecimento mediano das coisas: “[...] que fará o homem senão perceber
alguma aparência do meio das coisas, num desespero eterno de conhecer quer seu princípio,
quer seu fim?”. A Interpretação pascaliana da situação do homem como ser do
meio se apresenta de três maneiras distintas (CANGUILHEM, 1971, p.151).
Meio
entre o nada e o todo. Para mostrar a situação mediana do homem, Pascal sugere uma
mudança referencial:
[...] contemple pois
o homem a natureza inteira em sua alta e plena majestade, afaste o seu olhar
dos objetos baixos que o cercam. Olhe essa ofuscante luz posta como um fanal
eterno para iluminar o universo, parece-lhe a Terra como um ponto em razão da
vasta órbita que esse astro descreve, e fique tomado de admiração de que essa
mesma vasta órbita não passa de uma ponta muito delicada com relação à que
aqueles astros, que giram no
firmamento, abrangem.
(B.72; L.199).
Diante
da infinita grandeza da Natureza, o homem não passa de um ínfimo ponto, um nada.
Que o homem, agora, volte à vista para as coisas mais delicadas da Natureza,
[...] que um ácaro
lhe ofereça na pequenez de seu corpo partes incomparavelmente menores, pernas com
juntas, veias nas pernas, sangue nas veias, humores nesse sangue, gotas nesses
humores, vapores nessas gotas, que dividindo ainda essas últimas coisas ele
esgota as suas forças nessas concepções e que o último objeto a que ele pode
chegar seja agora o de nosso discurso. Ele pensará talvez que está aí a extrema
pequenez da natureza (B.72; L.199).
Utilizando-se
da infinita grandeza como referencial para ver o homem, este se torna um nada
e, utilizando-se do homem como referencial para ver o infinito em pequenez, ele
se torna um todo. Com efeito, o homem na Natureza “[...] é um nada com relação
ao infinito, um todo com relação ao nada, um meio entre o nada e o todo.” (B.72;
L.199).
A
situação do homem na Natureza que Pascal descreve nos Pensamentos está de pleno
acordo com o que ele afirma no De l’esprit géométrique:
[...] aqueles que
verão claramente essas verdades poderão admirar a grandeza e a potência da
natureza, nessa dupla infinidade que nos circunda de todas as partes, e
aprendem por essa consideração maravilhosa a se conhecer a si mesmos,
observando-se situados entre um infinito e um nada de extensão, entre um
infinito e um nada de número, entre um infinito e um nada de movimento, entre
um infinito e um nada de tempo. Sobre o que pode-se aprender a se estimar o seu
justo preço, e formar as reflexões que valem mais que todo o resto da geometria
(PASCAL, 1963, p.354 a e 355b).
As
lições de geometria ensinam a nossa condição: somos situados pela dupla infinitude
das coisas, a qual nos coloca sempre no meio (milieu) das coisas. Nesta
situação, não há meios de o homem se isolar e, nesta solidão, estabelecer um
conhecimento objetivo sobre a Natureza. Qualquer referência que o homem toma se
desloca constantemente sem jamais se deter. O próprio homem é um referencial
móvel: “[...] nada em relação ao todo, tudo com relação ao nada” (B.72; L.199).
Na
Natureza, o homem não se encontra somente nessa situação de meio (milieu) entre
o todo e o nada. Pascal acrescenta uma outra situação de meio: meio entre
meios.
Nossos sentidos não
percebem os extremos: um ruído demasiado forte ensurdece-nos,
demasiada luz nos ofusca, demasiada distância ou demasiada proximidade
impedem-nos de ver, demasiada longitude ou demasiada concisão do discurso
obscurece-nos, demasiada verdade nos assombra (...), demasiado prazer nos
incomoda, demasiada consonância aborrece na música, benefícios demais irritam,
(...). Não sentimos nem o extremo calor, nem o frio extremo; as qualidades
excessivas são nossas inimigas, não são sensíveis; não as sentimos,
sofremo-las. Demasiada juventude ou demasiada velhice tolhem o espírito, bem
como demasiada ou insuficiente instrução.
(B.72; L.199).
Se
o corpo é o foco da situação do homem entre o todo e o nada; e isso para
mostrar a nossa desproporção com relação ao duplo infinito, nesta, o foco são
os sentidos: eles não atingem os extremos. É nos interditado sentirmos tudo o
que é em demasia. Há muito e muito pouco de ser em nós para nos situarmos nos
extremos. Pascal mostra assim a desproporção dos nossos sentidos em relação às
coisas extremas. Estas passam como se não existissem para nós e nós não
existimos com relação a elas: “[...] elas nos escapam e nós a elas” (B.72; L.199).
Disso decorre que o único conhecimento que se pode ter das coisas é um conhecimento
mediano.
O
conhecimento das coisas é somente um conhecimento do meio (milieu), isto é, um conhecimento
das aparências das coisas. Sem assinalar nenhuma referência para o conhecimento,
Pascal o lança nas flutuações incessantes das aparências.
A
ausência de uma referência para o conhecimento resulta da própria situação do homem
como um ser do meio. Não somente como um meio entre o nada e o todo, meio entre
meios, mas também como um meio que, na expressão de Catherine Chevalley, pode
ser chamado de “interação generalizada” (CHEVALLEY, 1995, p.40).
O homem está em
relação com tudo o que conhece. Tem necessidade de espaço que o contenha, de
tempo para durar, de movimento para viver, de elementos e calor que o nutram,
de ar para respirar; vê a luz, percebe os corpos, enfim tudo se alia a ele
próprio. Para conhecer o homem, portanto, mister se faz saber de onde vem o
fato de precisar de ar para subsistir; e para conhecer o ar é necessário
compreender donde provém essa sua relação com a vida do homem, etc. A chama não
subsiste sem o ar; o conhecimento de uma coisa liga-se, pois, ao conhecimento
de outra. E como todas as coisas são causadoras e causadas, auxiliadoras e
auxiliadas, mediatas e imediatas, e todas se acham presas por um laço natural e
insensível que une as mais afastadas e diferentes, estimo impossível conhecer
as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem entender
particularmente as partes(B.72; L.199).
O
verdadeiro conhecimento da Natureza deveria ser o conhecimento do todo, uma vez
que as coisas “[...] mais afastadas e diferentes estão presas por um vínculo
natural” (B.72; L.199). Mas esse conhecimento perfeito é impossível ao homem.
Como um ser do meio; e devido a não fixidez desse meio, o homem não pode ter um
conhecimento certo das coisas, nem mesmo um conhecimento certo de si como uma
totalidade biológica, posto estar em relação a tudo o que o circunda e que ele
desconhece.
No
fragmento B.115; L.65 dos Pensamentos Pascal desenvolve uma reflexão sobre o homem
como uma totalidade biológica: “[...] o homem é uma substância (suppôt); mas,
se o anatomizarmos [...]”. Louis Marin aponta dois sentidos em que Pascal toma
o termo substância (MARIN, 1975, p.126-127).
Em primeiro lugar o termo
substância significa: sujeito,
fundamento, mas também como membro de um corpo que preenche certas funções para
o serviço desse corpo. Assim, o termo substância (suppôt) é empregado como
totalidade (sujeito) e como parte da substância que a representa em suas
funções. “O homem é uma substância” (B.115; L.65). Pascal formula assim a
totalidade. “Mas se o anatomizarmos, será ele a cabeça, o coração, as veias, o
estômago, cada veia, cada porção da veia, o sangue, cada humor do sangue?” (B.115;
L.65) A anatomização da substância (totalidade), o trabalho de desmembramento
do corpo faz com que se encontre o todo em cada uma de suas partes. O que é o
homem então? A cabeça, o coração, uma gota de sangue? Cada parte contém o todo,
pois sem cabeça, sem coração, sem veias, sem mesmo um humor de sangue, o homem
não é mais uma substância. Com efeito, o homem como substância, totalidade
biológica esconde a própria diversidade que o compõe. Pois, se o todo se
encontra, de algum modo, na cabeça, no coração, no sangue, para conhecer essa
totalidade é preciso uma análise infinita, uma anatomização em suas mais
diversas partes, uma “[...] anatomização interminável” (MARIN,1975, p.128).
Esta anatomização interminável torna impossível compor a máquina humana como
propõe Descartes.
Essa
mesma aparência de totalidade que o corpo humano oferece à visão e, com isso, encobre
a diversidade que o compõe, encontra-se nos termos cidade e campo: “[...] uma cidade,
um campo, de longe, são uma cidade e um campo” (B.115; L.65). O termo “cidade”
e
“campo”
são tomados como uma totalidade. “Mas à medida que nos aproximamos, são casas, árvores,
telhas, folhas, mato, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso é
abrangido sob o nome de campo” (B.115; L.65). É preciso notar aqui a mudança de
referencial que opera Pascal. Com a expressão: de longe, ele está no domínio da
geometria projetiva que toma um ponto como se fosse um espaço. O olho situado
fora leva a tomar “uma cidade, “um campo” e o “homem” (“totalidade biológica”)
na horizontalidade. Com a expressão à medida que nos aproximamos, Pascal está
no domínio da geometria euclidiana em que o espaço abarca o ponto, a análise
desse ponto é então infinita.
Como
na palavra campo encontra-se incluída tudo o que o compõe, para conhecê-lo verdadeiramente
é necessário conhecer tudo o que o constitui. Este conhecimento é impossível,
pois a análise da diversidade que constitui um campo, assim como a anatomização
do corpo humano, é interminável. Cidade, campo, de longe, nos apresentam, assim
como o corpo humano, a aparência de uma totalidade escondendo as infinitas
partes que a compõe, mas à medida que nos aproximamos, isto é, adentramos as
pequenas partes que compõem “um
campo”, “uma cidade” aquela totalidade é dissolvida. O termo “cidade”, “campo”,
oferecendo-nos a aparência de uma totalidade, esconde a nossa própria
ignorância: não conseguimos penetrar as infinitas partes que compõem essa
totalidade. A razão geométrica mostra-se incapaz de conhecer o todo, isto é, de
encontrar o laço natural que une todas as coisas diversas e distantes da
Natureza.
A
crítica ao discurso filosófico-científico presente naquele fragmento alia-se ao
limite do conhecimento presente no fragmento (B.72; L.199), pois sendo a
Natureza duplamente infinita e o homem um ser do meio, todo o discurso sobre a
Natureza e sobre o homem só pode ser um discurso parcial. Parcial porque, como
meio entre o nada e o tudo, ao homem é interditado o conhecimento dos primeiros
princípios, primeiras causas: “[...] como uma mesma causa pode produzir vários
efeitos diferentes, um mesmo efeito pode ser produzido por várias causas
diferentes” (PASCAL, 1963, p.202b). Como meio entre meios, ao homem somente é
possível um conhecimento aparente das coisas. Como uma interação generalizada, o
conhecimento verdadeiro da Natureza e de si próprio deve ser o do todo e de
suas partes. Mas é possível um conhecimento verdadeiro das coisas?
A
introdução do infinito na Natureza resulta na descoberta da “[...] incomunicabilidade
entre o espírito e as coisas” (MARIN, 1975, p.17-18). Como meio entre os dois
extremos, sem poder conhecer as primeiras causas, a razão é incapaz de desvelar
as coisas, pois estas, as mais afastadas e diferentes, estão ligadas por um
vínculo natural. “Limitado em tudo, esse termo médio (o homem) entre dois
extremos encontra-se em todas as nossas forças” (B.72; L.199). Assim, embora
Pascal assinale que o verdadeiro conhecimento da Natureza deva ser o do todo e
de suas partes, o único conhecimento possível ao homem é aquele das coisas tais
como elas nos aparecem, ou seja, perceber alguma aparência do meio das coisas.
A
incomunicabilidade entre o espírito e as coisas: o que impede o verdadeiro conhecimento
da Natureza, não decorre somente da situação humana em uma Natureza duplamente
infinita, decorre também do fato de o homem ser um ser composto.
COGNITIO-ESTUDOS:
Revista Eletrônica de Filosofia
São
Paulo, Volume 5, Número 2, julho - dezembro, 2008, p. 178-189
Centro
de Estudos do Pragmatismo – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Disponível
em <http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo>