Pesquisar neste blogue

Translate/Traduzir

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

PECADO ORIGINAL (SANTO AGOSTINHO)

O estudo da natureza humana em Pascal foi inspirado na doutrina do pecado original que se apoia em várias passagens das Escrituras: “a Epístola de Paulo aos Romanos  (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15:22), e uma passagem do Salmo 51”. A doutrina cristã que pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal através da queda do homem “Adão”. Este ponto de partida é realmente fundamental a toda reflexão de Pascal. Porém, a primeira exposição sistemática sobre o pecado original é a de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), no século IV, que associa o pecado à culpa herdada por todo o gênero humano que devido ao orgulho e egoísmo de Adão, rejeitou o amor e a obediência devida a Deus.

O objetivo aqui é ver como Santo Agostinho concebe a questão do pecado original e suas consequências perante a humanidade em geral.
Como se sabe, Santo Agostinho partilha da ideia que Deus é o sumo bem, e tudo que Deus criou é bom por excelência, como o homem, que gozava de plena perfeição e liberdade, flexível ao bem e ao mal, antes do pecado. “A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício.” Mas depois da queda, causada pela desobediência do primeiro homem – Adão – à ordem de Deus, ver-se-ia enlanguescido na injustiça, no ódio e longe do Criador. Depois da queda o homem perdeu sua primeira condição santa, justa e forte. Vejamos o que o pecado causou ao homem na visão de Agostinho.

 Mas a atual natureza, com a qual todos vem ao mundo como descendentes de Adão, tem agora necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentido e inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu criador ao qual não cabe culpa alguma.

Santo Agostinho faz uma descrição da condição do homem depois do pecado. Todos os homens são descendentes de Adão, desta forma, assim como Adão é pai de toda humanidade, pelo seu pecado, torna-se causa de todo pecado. “Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte; e assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram.” diz São Paulo (Rm 5,12) citado por Santo Agostinho. O pecado, desta forma, é transmitido atavicamente à toda criatura e não estamos livres dele pelas forças da natureza, pois esta está corrompida.

A natureza humana encontra-se doente, agora precisaria de um médico que possa restabelecer a saúde, desta maneira, o remédio não está no próprio homem. “Assim, para Agostinho, a liberdade só podia ser a culminação de um processo de cura.” O Mediador, Jesus Cristo, faria este papel savífico mediante a sua misericórdia. “De quem procede a misericórdia? Não é daquele que enviou Jesus Cristo a este mundo para salvar os pecadores [...]?”. Este porém, destinada àqueles que Deus predestinou e escolheu por sua infinita justiça e infinita misericórdia, pois, “[...] toda raça humana merece castigo.” Depois do pecado de Adão, “o vício” enfraqueceria a natureza, cobrindo-a de trevas, sendo o Mediador a luz para as trevas e a cura para uma natureza doente.

Deus não é, para Agostinho, causa do pecado, pois foi o próprio homem que fez mal uso do livre arbítrio que Deus o concedeu no momento da criação, desta maneira, a fonte de todos estes males “é o pecado original que foi cometido por livre vontade do homem”. Antes da queda o livre arbítrio era flexível para o bem e para o mal, mesmo com o pecado o homem continua com seu livre arbítrio, mas este totalmente diferente daquele que se encontrava no primeiro homem, agora suas escolhas se restringem a uma gama de amores viciosos e maléficos. “O meu amor é meu peso. Para onde quer que eu vá é ele que me leva.”. O pecado corromperia a natureza e afastaria o homem do sumo Bem, Deus. Desta maneira, fazer-se-ia necessário distinguir o que Santo Agostinho entende por natureza.

Igualmente, quanto ao termo “natureza”. Entendemos de um jeito, quando falamos em sentido próprio, isto é, a respeito da natureza específica, na  qual o homem foi primeiramente criado no estado de inocência. De modo  diferente, entendemos o termo “natureza” quando tratamos dessa natureza na qual como consequência do castigo imposto ao primeiro homem, após sua condenação, nascemos mortais, ignorantes e escravos da carne [...].

O termo “natureza”, como relata o próprio autor, pode ser entendido de duas  maneiras específicas. A primeira seria aquela que se refere a uma natureza antes do pecado de Adão e, a segunda, depois do pecado. O estado que se encontrava e que se encontra o homem tem como ponto de referência Adão. O primeiro termo natureza é aquele da inocência, seria o homem saído das mãos de Deus, bom, saudável, forte, sem mácula, contemplando Deus face a face. Adão era o mais perfeito dos homens e não havia como superá-lo. O segundo modo, seria aquele que caracterizaria o homem depois do pecado de Adão, castigado e condenado por Deus à morte, sendo assim, “mortal”, “ignorante” e “escravo”.

Se antes do pecado o homem desfrutava da imortalidade, através da bondade de Deus em seu ato criador, da sabedoria, por contempla-LO face a face, e liberdade em sua capacidade de escolha, com o pecado, estes adjetivos tornar-se-iam contrários àqueles do primeiro estado de natureza, de maneira especial naquilo que diz respeito ao livre arbítrio na discussão pelagiana, pois este será visto como capaz somente do mal quando deixado sob o comando de suas próprias forças. “Dessa maneira, aprouve, muito justamente a Deus, que governa soberanamente todas as coisas, que nascêssemos daquele primeiro casal, com ignorância e dificuldade no esforço e na mortalidade.” Pela justiça de Deus os homens são condenados a viver ignorantes e mortais. “Isso porque ao pecarem foram precipitados no erro, na dor e na morte.”

As características do primeiro estado de natureza em Santo Agostinho são diferentes do segundo estado de natureza, logo a aplicação dos termos também se diversifica. É importante ressaltar que Santo Agostinho não fala de duas naturezas, pois, desta maneira, cairia em contradição com a tese de que Deus não é causa do pecado. Se Deus criasse as duas naturezas, a primeira não haveria problemas, pois trata-se de uma natureza boa, no entanto, a segunda natureza criada seria corrompida e Deus não poderia criar nada corrompido, mesmo porque, a corrupção nada mais é do que a ausência de Deus, ou seja, aquilo que Agostinho chama de mal.

Diante desta distinção do conceito de natureza construída ainda quando dialoga com os maniqueus, Santo Agostinho estaria apto para, mais tarde, responder à intervenção de Pelágio173 que, diante da afirmação de Santo Agostinho que a natureza, depois do pecado de Adão, é má, acusa-o de substancializar o pecado, o que é o mesmo que substancializar o mal.

Se dermos por certo que o pecado não é substância, não se diria também que o não comer, para não falar de outras coisas, não é substância? Dir-se-ia melhor que é o privar-se da substância, pois o alimento é substância. Mas o abster-se de alimento não é substância, mas a substância corporal, se se priva do alimento, de tal modo se enfraquece, deteriora-se pelo desequilíbrio da saúde, consomem-se suas forças, se extenua e se abate pela lassidão que, se de algum modo continua vivendo, mal poderá se acostumar novamente ao alimento, cuja abstenção foi causa de sua ruína.

 O pecado não é substância, assim como o não comer não é substância. Mas o que é substância para Santo Agostinho? “[...] Deus é substância [...].” O nome “substância”, que problematiza aquilo que seria o mal, é dado porque, sendo a substância algo que subsiste por si mesmo, ou seja, Deus, o mal não poderia ser substancializado de maneira nenhuma, e nisto concordam tanto Agostinho quanto Pelágio. Para sair da acusação da substâncialidade do mal por Pelágio, Santo Agostinho recorre a uma analogia: “o não comer”. O não comer não é substância, mas é o “privar-se da substância”, pois neste caso, o que caracteriza a substancialidade é o alimento. O alimento, para Agostinho, não é Deus – em um sentido panteísta –, pois, não podemos esquecer que esta passagem é uma analogia metafórica. Sendo o alimento a substância, privar-se dele deteriorizaria o corpo e, consequentemente, “desequilibraria a saúde” minando as forças e consolidando um estado de cansaço que causaria a morte.

Mesmo “o não comer” não sendo uma substância, ele é capaz de deteriorar o corpo, assim como o pecado que, mesmo não sendo uma substância, pode corromper o corpo. Será necessário o alimento para novamente estabelecer o corpo em seu estado de saúde, da mesma forma que precisar-se-á, para estabelecer a alma, da cura de seus males.

O pecado original, fonte de todos os males, prejudica ativamente o homem, desta maneira, devemos temer tudo aquilo que é pecaminoso, pois “[...] com esse nome se expressa o ato de uma má ação.” Santo Agostinho tenta livra-se das acusações de maniqueísta por parte dos pelagianos, pois, se fosse afirmado uma substancialidade ao mal, consequentemente Deus, que é criador de tudo, seria criador do mal, no entanto, como de Deus nada provém que não seja bom, o mal existiria per si, como uma entidade absoluta. Sendo o mal manifesto na corrupção da matéria e esta criada por Deus, poderíamos supor que o mal é transmitido pela matéria? Vejamos a explicação de Costa.

Logo, o ponto de partida para a explicação de como se deu a transmissão do pecado original de Adão aos seus descendentes só pode estar na alma, e o pecado só pode partir da alma para o corpo, uma vez que, [...] o corpo é um bem neutro, um elemento passivo ou um mero instrumento a serviço da alma, que pode servir-se dele tanto para o bem como para o mal.

O corpo em Agostinho é passivo, ele recebe as inerências da alma que o corrompe, desta maneira, a corrupção atávica dar-se-ia “na alma”, pois ela é infectada pelo pecado de Adão e transmite este pecado para toda humanidade. Mas de onde vem alma? Difícil resposta. Todavia, uma coisa é certa: o mal tem como causa o pecado original. Mas antes de tentar resolver o atavismo do mal, Santo Agostinho encontraria outro problema: o livre arbítrio. Deus não poderia ser causa da queda, nem o homem coagido a pecar, o pecado porém, insere-se na alma, desta maneira, qual a origem do pecado de Adão – a causa é o homem ou há outra causa, perguntará Agostinho – e como ficaria sua capacidade de escolha depois da queda? Neste momento é necessário ressaltar uma diferença importante na obra de Santo Agostinho: a diferença entre o livre arbítrio e a liberdade. Iniciemos esta distinção pelo conceito de liberdade na discussão com os maniqueus.
Arlindo Rocha (Graduado em Filosofia) 

Fonte Principal:

Dissertação de Mestrado de  Andrei Venturini Martins   

“CONTINGÊNCIA E IMAGINAÇÃO EM BLAISE PASCAL” 





quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

PASCAL E DESCARTES



Um maravilhoso encontro entre dois vultos da filosofia moderna “René Descartes e o Jovem Blaise pascal”. Diálogo esse que gira em torno da “busca de certeza do conhecimento”. Por um lado, Descartes procurava afirmar a possibilidade de um conhecimento certo e seguro ao propor um método que partindo da dúvida seguisse por noções claras até alcançar a verdade; em contrapartida, Pascal quis reavaliar a ideia de possibilidade de conhecimento e refutar a doutrina cartesiana com o argumento da limitação e distinção natural de cada modo de apreender que dispõem o homem.

Partindo da concepção de que não podemos julgar certamente, pois ainda não dispomos de uma doutrina que nos forneça ideias claras, como poderíamos tomar qualquer coisa por certo? Na verdade não poderíamos, qualquer caminho escolhido em meio a tanta confusão se provará correto ao fim do percurso quando se avaliar o trajeto.

A escolha se manifesta em contornos relativos. Parece ser melhor seguir com resolução no mesmo caminho para não vagar a esmo na busca pelo saber verossímil. Com a impossibilidade de julgar com segurança como queria Pascal e de que Descartes concorda até certo ponto, faz-se necessário uma moral provisória para ser resoluto no caminho escolhido e para cultivar a razão com o propósito de no fim conhecer certamente todas as coisas gerais (DESCARTES, 1994, p. 59).


O método cartesiano, criado por René Descartes, consiste no ceticismo metodológico - duvida-se de cada ideia que pode ser duvidada. Ao contrário dos gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve ser, Descartes institui a dúvida: só se pode dizer que existe aquilo que possa ser provado. O próprio Descarte consegue provar a existência do próprio eu (que duvida, portanto, é sujeito de algo - cogito ergo sum, penso logo existo). O ato de duvidar como indubitável.

Também consiste o método na realização de quatro tarefas básicas: 
a)  Verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou coisa estudada; consiste em nunca aceitar algo como verdadeiro sem conhecê-lo evidentemente como tal, isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que não se apresentasse tão clara e distintamente à minha inteligência a ponto de excluir qualquer possibilidade de dúvida.

b) Analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas, em suas unidades de composição, fundamentais, e estudar essas coisas mais simples que aparecem. Trata de dividir o problema em tantas partes quantas fossem necessárias para melhor poder resolvê-lo.

c)  Sintetizar, ou seja, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro; e conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, gradualmente, até o conhecimento dos mais compostos; e admitindo uma ordem mesmo entre aqueles que não apresentam nenhuma ligação natural entre si.

d) Enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento, ou seja, fazer enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que tivesse certeza de nada ter omitido.

Pascal defende que, conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los (Blaise Pascal).

A fundamentação do conhecimento em Pascal, ao invés de apontar para a capacidade ilimitada da razão “suficiência humana” como defende Descartes, indica antes a existência de limites “insuficiência epistemológica” que impede o homem de conhecer com tudo certeza. Por mais que conheça, o homem está encurralado num provincianismo cognitivo, por isso, jamais, poderá alcançar os limites da suficiência. Mesmo sendo feito visivelmente para pensar, ele se esbarra com os limites epistemológicos, aos quais ele não pode escapar.

Por isso, propõe o pluralismo metodológico para chegar à verdade, ou seja, não há um método por excelência para chegar a verdade, mas sim, um conjunto de métodos, o que quer dizer que para cada situação existirá um método específico, uma vez que não podemos, por exemplo, definir ou demonstrar a certeza relativa aos fundamentos que sustentam a razão, mas podemos ao menos definir e demonstrar tudo que vier após os fundamentos.

Para pascal existem duas formas para chegar ao conhecimento, o coração e a razão. O coração é responsável por captar os primeiros princípios (conhecimento intuitivo) e a razão cabe fazer a demonstração desses princípios “conhecimento demonstrativo”. Por isso, é impossível pedir ao coração que demonstre qualquer coisa que ou então pedir a razão que sinta alguma coisa, cada um atua no seu âmbito. Quando Pascal afirma “O coração tem razões que a razão desconhece” quer com isso, reafirmar a importância dessas duas faculdades para o conhecimento e ao mesmo tempo reconhece que ambos têm seus limites. Onde um opera com legitimidade, o outro não interfere...

Concluído, verifica-se que Descartes defende a suficiência humana, ou seja, a capacidade do homem conhecer através da razão, e, por outro lado Pascal defende a insuficiência humana, apontando o limite racional e empírico para se chegar ao conhecimento, ou seja, está vedado ao homem, a possibilidade de chegar ao conhecimento pela razão e o mesmo acontece no que tange a experiência empírica.

Arlindo Rocha
Graduado em Filosofia

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

CRIAÇÃO/ TEATRO - O ENCONTRO DE DESCARTES COM O JOVEM PASCAL

Jean-Chaude Brisville*
Dia 24 de setembro de 1647. Fim de tarde. Em Paris, perto da Place Royale, uma cela, no convento dos Mínimos. Mobília sumária. Uma porta, do lado direito, está aberta. Ao levantar a cortina, Descartes, sozinho, de pé, no canto da janela, olha par a fora. Depois, vai arrumar a mesa e as duas cadeiras. Entra Pascoal, que pára, ao dar com Descanes, e o cumprimenta. Pascal, 24 anos. Descartes, 51 anos.

PASCAL: Quanta honra, senhor. Ser recebido por quem está sempre de passagem é um grande privilégio. Sei o quanto lhe custa.
DESCARTES: Nada. Se não tivesse pedido para me ver, eu mesmo provocaria este encontro. Uma celebridade tão precoce excita naturalmente a curiosidade – e desculpa a minha. Entre e sente-se. Creio que temos muito a nos dizer.
PASCAL: Uma infinidade de coisas, de fato. (Descartes convida-o, com um gesto, a sentar-se. Pascal o saúda de novo e aceita. Descartes, por sua vez, também se senta. Silêncio. Eles se observam um breve instante.) Antes de mais nada, posso me permitir uma pergunta? (Descartes concorda com a cabeça.) Por que o vemos tão raramente em Paris?
DESCARTES: Porque, justamente, as pessoas vêm me ver – apenas me ver. Sei que não é o seu caso: nós podemos conversar. Mas a maioria não quer senão a minha aparência, como se eu fosse um animal exótico, atraindo o público de curiosos, pelo que tem de estranho. Um filósofo, apesar da sua sabedoria – ou por causa dela –, sente um pouco de pena que se prefira ver os traços do seu rosto ao fundo do seu pensamento.(Tempo)São os ares de Paris, sem dúvida.
PASCAL: Pode-se deixar de respirá-lo a algumas léguas daqui.
DESCARTES: Concordo, mas por melhor que seja uma casa de campo sempre sentimos falta do conforto da cidade, e nunca encontramos completamente a solidão perfeita que se deseja.
PASCAL: E a consegue em Amsterdã?
DESCARTES: Sim... por algum tempo. Não conheço nessa cidade nenhum homen que não pratique o comércio, exceto eu, e todos estão de tal maneira atentos aos seus lucros que poderia passar a vida inteira sem ser visto por ninguém .
PASCAL: Nunca imaginei que a glória lhe fosse um fardo tão pesado.
DESCARTES: Esqueça a minha glória. Me dê esse prazer. A conversa com pessoas que estimo é o maior bem da minha vida, e eu ficaria aborrecido se a nossa, impedida pelas alturas em que me coloca, não se realizasse. Minha reputação não é tão grande felizmente, e para falar sem rodeios eu mais a temo do que a desejo.
PASCAL: Não foi o que sempre almejou?
DESCARTES: Na sua idade, talvez... na época em que eu queria ver reconhecido o meu pensamento.
PASCAL: Queria?
DESCARTES: Minha razão, hoje, me dispensa de ter razão.
PASCAL: Disposição admirável, feito de um espírito suficientemente elevado para se bastar. Eu não cheguei a essa satisfação e ainda penso que um homem, tendo encontrado a verdade, deve comunicá-la aos seus comtemporâneos. Perdoe minha ingenuidade.
DESCARTES: Vejo-a com simpatia.
PASCAL: Então não faria nada para convencer um interlocutor de boa fé?
DESCARTES: Deixo esse cuidado aos meus trabalhos que estão nas livrarias e preservo a liberdade. Não há o que eu mais preze. (Tempo)Ser livre para não fazer nada. Ah, o lazer... que alegria.
PASCAL: O lazer?
DESCARTES: O que eu mais prezo é não fazer nada – pelo menos aparentemente. Porque o lazer, vai descobrir, talvez com os anos, é uma oficina subterrânea onde o pensamento trabalha à nossa revelia. As tentativas para impedir o meu retiro, não as posso suportar.
PASCAL: O que valoriza ainda mais me ter recebido.
DESCARTES: (Sorrindo): É que tínhamos coisas a nos dizer. (tempo)Falaram-me, em Ruão, de suas experiências. Eu mesmo tenho refletido sobre o Vácuo, e estou interessado em saber o que pensa a respeito.
PASCAL: Escrevi sobre isso um Tratado que está, neste momento, no prelo, e que satisfará, espero, a sua curiosidade. Se me permitir, vou enviá-lo assim que for publicado.
DESCARTES: Eu o lerei com muito prazer, mas não em Paris. A rainha Cristina teve a gentileza de pensar em mim e, apesar dos invernos do norte, que eu receio para a minha idade, aceitei o convite. Peço, então, que remeta a sua obra para Estocolmo. Aposto que será tema de uma das minhas conversas com essa grande princesa. Ela é erudita e não teme as mais austeras discussões.
PASCAL: Eu lhe enviei minha máquina aritmética: ela talvez se lembre.
DESCARTES: A princesa tem boa memória – me disseram. (Tempo)
PASCAL: Eis, pois, que mais uma vez está de partida...
DESCARTES: Não tenho laços com a França. Falando com franqueza, eu me sinto um pouco em casa em qualquer lugar da Europa, sem me sentir verdadeiramente em casa em lugar nenhum. Mas não tem importância.
PASCAL: Atrevo-me, no entanto, a me surpreender que um espírito livre e forte como o seu possa se adaptar aos constrangimentos que a corte obriga.
DESCARTES: Não estou seguro que o meu possa se adptar, mas a provação tem seu interesse. Veja que ela ensina ao meu espírito que ele é menos livre e forte do que acreditava.
PASCAL (Sorrindo): Estou sendo pago com um jogo de palavras? DESCARTES: É proibido sorrir?
PASCAL: Claro que não. Mas eu não me surpreendo menos com o fato de que não tenha encontrado um lugar; que tenha passado a vida no exílio e que nada o tenha retido no seu país.
DESCARTES: É verdade que eu tomei todas as precauções para não me fixar. Em trinta anos, acho que não passei mais do que cinco na França. Mas não foi por acaso. Meu pensamento amava viajar e se eu não tivesse vagabundeado tanto, nós teríamos vivido juntos menos bem.
PASCAL: Ele pedia movimento?
DESCARTES: Queria que e escapasse aos vínculos habituais. A solidão, o silencio e minha invisibilidade lhe pareciam preferíveis. E eu obedeci.
PASCAL: Invisibilidade?
DESCARTES: Digamos, a máscara. Ando mascarado desde que saí da escola. É preciso ser astuto com os outros, se se quer pensar à vontade.
PASCAL: Parece que, para si, pensar é a mola da vida.
DESCARTES: Eu confesso, de bom grado, que me divirto a estudar as operações do meu espírito e a me concentrar na minha atenção. Aquilo que eu encontro é, talvez, menos importante do que o ato da descoberta. Há um certo fascínio em observar seu mecanismo – e em dominá-lo. Não vá imaginar que passo meu tempo na mesa, a escrever. Sou muito preguiçoso, como já disse, e a cama me prende cotidianamente dez horas em vinte e quatro. Mesmo tendo dormido bastante, sinto dificuldades em deixá-la. Mas, apesar de tudo, meu Método me apareceu na ocisidade de um quarto aquecido. A cada um seu método. (Tempo) E o jovem amigo, dorme bem?
PASCAL: Muito pouco... e mal.
DESCARTES: Deveria dar um passeio antes de se deitar. Isso relaxa os sentidos.
PASCAL: Obrigado, pelo conselho. Aprecio-o sobretudo porque não o esperava na nossa conversação.
DESCARTES: Esperava mais... sim, compreendo.
PASCAL: Não vim, admito, para ouvir aquilo que a minha ama me teria dito.
DESCARTES: Ela sabe, tenho certeza, muito mais do que eu a respeito de certas coisas. Enfim, já que somos gente que pensa, não vamos perder tempo com a saúde. Vejamos... Ah, e se falássemos do Vácuo? Estou impaciente para saber o assunto do seu opúsculo, e se me pudesse dar, em algumas palavras, uma idéia das suas conclusões...
PASCAL: Não me interessam mais. DESCARTES: Não diga!
PASCAL: Já dei muito de mim para a ciência. Desde um certo encontro que tive, sei que há coisas mais importantes e não quero me distrair. Não tenho mais tempo.
DESCARTES: Na sua idade?
PASCAL: Morre-se quando Deus quer. Minha saúde não é boa. É possível que isso seja uma advertência de Deus. E depois, seja qual for o curso dos meus dias, não terei anos suficientes para cuidar da minha salvação, que requer tudo de mim, daqui por diante.
DESCARTES: Renunciaria às suas pesquisas? 
PASCAL: Elas só podem me levar à decepção. 
DESCARTES: Como o sabe?
PASCAL: Porque, no final das contas, não se sabe nada, e minha alma tem sede de certezas. Devo, então, saciá-la na fonte suprema.
DESCARTES: Mas a ciência...
PASCAL: Nada nos diz de Deus.
DESCARTES: Pode nos ajudar, pelo menos, a conhecer sua obra.
PASCAL: A conhecê-la? Pois é... O que ela nos ensina é insignificante. Eu diria até que ela aumenta nossa ignorância, fingindo dissipá-la. Além disso, que é já bastante perigoso, ela nos inclina ao orgulho, permitindo que esperemos atingir o alvo enquanto ele se afasta a cada passo dado em sua direção. Tudo é ilusão. Estou convencido: nossa inteligência se perde em maus caminhos. Por mim, volto ao centro onde está a luz da verdade.
DESCARTES (Sonhador): Ao centro...
 PASCAL: Sim, à minha única certeza.
DESCARTES: Ouvindo-o, pode-se pensar que tem o monopólio dela. Creio em Deus também, mas sem ameaçar ninguém.
PASCAL: Terei eu ameaçado quem quer que seja?
DESCARTES: Havia em seu tom de voz uma tal segurança... Desconfio sempre da fé que se exprime com esse tom.
PASCAL (Levantando-se bruscamente): Senhor!
DESCARTES: Não duvido da sua. Vamos, tranquilize seu espírito... e se eu o ofendi, peço-lhe desculpas. (Tempo)Chego de um país onde se fala de Deus serenamente.
PASCAL: Como se pode falar dele serenamente?
DESCARTES (Sorrindo): Em Amsterdã... 
PASCAL (Também sorrindo) Sim, tem toda razão: em Amsterdã...
DESCARTES: É uma boa cidade.
PASCAL: É. Para se passear.
DESCARTES: Para pensar... para pensar, sem ser percebido.
PASCAL: Para mim, mesmo só, no meu quarto, sem outra companhia, estou sempre sob o olhar de Deus. (Tempo)Quando não o sinto sobre mim... (Tempo) Tenho a impressão de cair. Um abismo que se abre à minha esquerda, onde algumas vezes sou obrigado a colocar uma cadeira, a fim de resistir ao seu apelo.
DESCARTES: Isso é curioso.
PASCAL: (Baixo) A vertigem. (Tempo) Aposto que a sua coragem desconhece esse tipo de fraqueza.
DESCARTES: Digamos que Deus, na sua bondade, me preservou desse incômodo. Mas, há pouco, tocou num certo encontro...
PASCAL: Sim. Conheci recentemente dois fidalgos que um padre, um amigo do abade de Saint-Cyran, reconduziu à fé. A conversa com eles me levou a me dar a Deus, segundo um novo caminho.
DESCARTES: Um novo caminho?
PASCAL: Aquele que os senhores de Port-Royal adotaram. São pessoas muito bem intencionadas, ainda que não sejam bem vistas pelo poder. Deve saber que o abade de Saint-Cyran, mesmo que não se tenha observado em suas palavras ou em seus atos qualquer falta, esteve preso cinco anos, saindo apenas para morrer, e que se tornou extremamente perigoso dizer-se seu amigo.
DESCARTES: Por quê?
PASCAL: Porque ele era detestado pelos Jesuítas, os todo-poderosos do reino. Eles influenciaram a opinião geral... é conhecida sua arte nisso...
DESCARTES: Fui aluno deles em La Flèche. 
PASCAL: Eu não sabia. 
DESCARTES: Mas dizia que...
PASCAL: Que a Sorbonne e os representantes do clero colocam sob suspeita tudo o que vem de Saint-Cyran. Ele foi amigo do bispo Jansênio e aderiu à sua concepção da graça. Ora, ela não agradou aos Jesuítas.
DESCARTES: Preciso confessar que estou bem longe desse tipo de discussão.
PASCAL: Realmente, vista de Amsterdã... 
DESCARTES: Desculpe-me se volto atrás, mas não me disse – pode me corrigir se eu estiver enganado: "No final de contas nós não sabemos nada, não se tem nenhuma certeza?" Me parece, no entanto, que sabemos que 3 e 2 são 5.
PASCAL: Onde quer chegar?
DESCARTES: 3 e 2 são 5?
PASCAL: Quem pode contestar...
DESCARTES: Eu concluiria, daí, que as matemáticas são, para todos os que sabem contar, fonte de certeza.
PASCAL: Ah, senhor, percebo que não estamos prontos para nos entender. É verdade – uma certa verdade – que 3 e 2 são 5. Mas o que posso fazer com essa verdade? Tivesse eu percorrido todo o saber de que os homens são capazes, chegaria à ignorância com que nasci. A ignorância que se conhece... ignorância sábia, mas ainda aSsim ignorância, e isso me deixa insatisfeito.
DESCARTES: É bem você que está falando em ignorância?
PASCAL: Revelada em tudo que aprendi.
DESCARTES: Quem fez as ciências avançarem, numa idade em que se joga bola, não pode falar dessa maneira, nem renunciar ao dom já exercido com tanta mestria...
PASCAL: Não procurei senão escapar do tédio, da inquietação e do desgosto. O que não foi um bom caminho.
DESCARTES: Tédio, inquietação, desgosto?
PASCAL: Talvez não os tenha jamais conhecido? Ah, como eu o invejo!
DESCARTES: Nem sempre fui poupado.
PASCAL: Então, pode me compreender.
DESCARTES: Compreendo, quando me fala do seu tédio, mas não o acompanho quando acusa as ciências.
PASCAL: O que elas lhe ensinaram?
DESCARTES: Ora, muitas coisas.
PASCAL: Sim, que o universo não tem limites e que o homem hoje não sabe mais onde se colocar. Olho para todas as partes e só vejo escuridão. Nós sabemos apenas que caímos do nosso lugar e que o procuramos, sem sucesso, nas trevas.
DESCARTES: É exato que a nossa ciência é pouca e que assim que olhamos o céu...
PASCAL: Seu silêncio eterno me apavora.
DESCARTES (Surpreso): Apavora?
PASCAL (Baixo): É, me apavora e eu lamentaria aquele que dele não tem medo, pois deSconhece nosso verdadeiro lugar. (Tempo) Deus é nossa morada. Nossa única felicidade é estar com ele e nosso único mal é dele estar separado. É a religião que nos diz, não a ciência.
DESCARTES: Mas não diz o contrário.
PASCAL: Ela nos faz esquecer a nossa fraqueza, onde está nossa grandeza.
DESCARTES: Vamos, o que está dizendo! Se temos uma grandeza ela está, para mim, no exercício soberano do pensamento. Nele. Apenas nele.
PASCAL: Como um pensamento que não consegue apreender seu objeto confessaria nossa fraqueza? Ou é sua pretensão dominar o infinito... a eternidade? Seria pecar por orgulho.
DESCARTES: Não creio pecar tentando ir mais longe nas matemáticas, que me fazem pressentir uma representação do universo. (Tempo) O sistema do mundo talvez seja um sistema de números. É algum escândalo pensar isso?
PASCAL: Teria a ambição de ser o construtor de um universo inteiramente submisso à geometria?
DESCARTES: Já que existe a mecânica, lá em cima, eu gostaria de tentar seu cálculo.
PASCAL: E o único homem que o lograria, mas, como a eternidade, o infinito não cabe nos números. Por isso trememos. Não paramos de tremer.
DESCARTES: Esse tremor perpetuo não é da minha natureza. Embora eu já o tenha experimentado algumas vezes, realmente. Mas a solução estava no meu espírito.
PASCAL: Uma solução para o medo?
DESCARTES: É.
PASCAL: No seu espírito?
DESCARTES: No domínio que ele soube ter sobre ele mesmo. E ainda uma vez lhe peço que não me julgue orgulhoso. Eu já disse: estudar as operações do meu pensamento, vê-lo em ação, é meu prazer supremo. E um remédio, além do mais. Um remédio para a inquietação e acesso à paz soberana.
PASCAL: Alcançar a paz pelos números. Pode um cristão defender essa maneira de raciocinar? Não vê que ela acabaria por levá-lo a prescindir de Deus?
DESCARTES: Jamais duvidei que ele tivesse posto o mundo em movimento.
PASCAL (Sorrindo): Sim, como um piparote, e depois não há nada a fazer com ele.
DESCARTES (Sorrindo): Se tivesse o poder, certamente me mandaria queimar.
PASCAL: Não, não cabe a mim julgá-lo e, menos ainda, queimá-lo, pois eu mesmo senti, um dia, esse orgulho do espírito que tanto sofri para ultrapassar. Permito-me apenas dizer que um verdadeiro cristão só encontra a paz em Jesus Cristo e que só sua graça a pode conceder. Fora dela não vejo mais que distração condenável e orgulho da inteligência.
DESCARTES: Creio que dramatiza. Pode-se assegurar a salvação sem ferir as ciências e ser um bom cristão, interessando-me pela geometria.
PASCAL: Isso é pedir demais. 
DESCARTES: É que ela me dá muito.
PASCAL: Sem dúvida eu sou mais exigente, pois esse muito, para mim, parece pouco.
DESCARTES (Gentil): Que intransigência.
PASCAL: Eu meço minha vida mortal pela imortalidade da minha alma. Seria preciso ter perdido todo o sentimento para ficar indiferente a isso. Sim, eu confesso: a indiferença sobre a minha eternidade me irrita.
DESCARTES: Não vemos Deus com os mesmos olhos.
PASCAL: Creio que o deduz, não o vê. Para si, ele é um princípio, para mim, um calor. Pensa nele, e eu o sinto. Eis toda a diferença.
DESCARTES: Muito bem.
PASCAL: Mas eu estou falando bastante de Deus e pouco de Jesus Cristo. Ora, nós conhecemos Deus apenas através de seu filho, e não nos conhecemos a nós mesmos senão através dele. Jesus Cristo é um Deus de quem nos aproximamos sem orgulho e nos curvamos sem desespero. Ele ensinou os homens que eles eram infelizes e pecadores... Que era preciso libertá-los, esclarecê-los e curá-los, e que isso aconteceria se odiássemos nosso próprio eu...
DESCARTES: No entanto, ele não disse que era preciso amar o próximo como a si mesmo?
PASCAL: Disse.
DESCARTES: Então, se devemos nos odiar... Enfim, deixemos isso. Poderíamos discutir a esse respeito até o fim do mundo.
PASCAL: Jesus estará em agonia até o fim do mundo, e eu me recuso a dormir enquanto ele morre.
DESCARTES: É uma alusão às minhas dez horas cotidianas de sono? 
PASCAL: Não estou brincando.
DESCARTES: Mas eu também não. Respondo a essa espécie de furor contido que suspeito em suas palavras. Ê, como se eu estivesse para ser convertido! Embora eu tenha vivido por muito tempo num país protestante, será que preciso dizer que a nossa religião é a mesma?
(Tempo) Eu não gosto de discussões, e sinto-o sempre próximo delas. Não leve a mal, portanto, que eu queira arejar a nossa conversação. Isso não vem de um ímpio, mas de um homem...
PASCAL: De um homem que me inspira profundo respeito.
DESCARTES: Vou tentar me satisfazer. 
PASCAL: Me perdoe, não vim aqui com a intenção de discutir. Talentoso ou não, um homem da minha idade ainda tem muito que aprender, e só de si, provavelmente, posso esperar alguma luz. Tenho enorme tendência a me esquentar... reconheço. Peço que me desculpe. Mas se apóia tanto na razão que eu, pelo contrário, sou tentado a fazer pouco dela. Para ser franco, ela não goza mais da minha inteira confiança.
DESCARTES: Vou talvez surpeendê-lo ao dizer que a sua autoridade me apareceu em sonho, numa noite de novembro de 1619. Eu estava na Alemanha, mobilizado pelas guerras, e como voltava para o exercito vindo do coroamento do imperador, o começo do inverno me prendeu num quartel, onde permaneci todo o dia, doente e só, num pequeno quarto aquecido. Nessa noite, então – a noite de 10 para 11 de novembro – tive três sonhos.(Tempo) Não se preocupe: não vou atormentá-lo contando-os. A narrativa dos sonhos alheios causa sempre um tédio mortal. Mas digo, entretanto que a eles devo a semente do meu Método e, sem dúvida, ainda muito mais.
PASCAL: O que entende por isso?
DESCARTES: A luz em que percebi, de repente, o meio de dissipar a treva mais profunda. Assim, como pode ver, se levo em conta a razão é pelo atalho do sonho. As vezes, trabalha-se, dormindo, para o progresso do espírito.
PASCAL: E esses três sonhos, se me permite perguntar, acredita que vieram de Deus?
DESCARTES: Se a minha vontade dormia, só podia vir dele.
PASCAL (Lentamente): Não lhe ocorreu que a razão que descobre seu aval no sonho está em perigo de perder o crédito?
DESCARTES: Me pareceu, ao contrário, que lhe dava uma autoridade suplementar.
PASCAL: Admiro seu culto à razão, mas para mim ela não conseguiu nunca me fazer esquecer a finalidade da vida. Me esforço em vão para ser valente, sei que dentro de poucos anos algumas pás de terra serão jogadas sobre a minha cabeça e tudo aquilo que ponho diante de mim para impedir que eu veja o precipício não me impede de correr para ele. O que pode a razão contra isso?
DESCARTES: Nada.
PASCAL: Todos os prazeres são vaidade. Estou convicto de que não existe a verdadeira satisfação e que sou uma sombra ligada, por um breve instante, a um canto do universo. Tudo o que sei é que devo morrer logo, mas o que mais ignoro é esta própria morte que não poderei evitar.
DESCARTES: Concordo.
PASCAL: Mas a geometria não deixa de ter, para si, a mesma importância.
DESCARTES: Correto. 
PASCAL: Não o compreendo.
DESCARTES: Saber que se deve morrer impede de viver e pensar? Acho que confio mais em Deus. Se a minha alma pertence a ele, o uso que faço do meu espírito diz respeito a mim. Enquanto pensar, existirei. Quanto ao resto...
PASCAL: E assim que se pode definir a eternidade? O resto... Para mim é tudo.
DESCARTES: Um tudo que por aqui não se conhece – e é isso que o apavora e que não aceita. Pretende apreender o inapreensível.
PASCAL: Somente sondo o abismo e sofro a sua atração.
DESCARTES: Para mim, refletir sobre a morte, o infinito e a eternidade é um trabalho que ultrapassa a minha inteligência. Eu não gostaria de abusar do pouco tempo e do lazer que me restam utilizando-os para desvendar semelhantes dificuldades.
PASCAL: Sempre a inteligência acima de tudo. Ela nada tem a ver com isso. Na ordem das coisas a serem compreendidas, ela ocupa o mesmo lugar, para mim, que o nosso corpo na extensão da natureza. Ou seja, o último.
DESCARTES: O que põe na frente?
PASCAL: Um sentimento que parece jamais tê-lo atingido.
DESCARTES: Diga.
PASCAL: A miséria do homem.
DESCARTES: Me atinge também, ainda que de maneira menos abstrata. Na sua idade, raramente vemos morrer alguém que se ama. O que aconteceu comigo. (Tempo) Conheci uma mulher na Holanda, uma simples doméstica, que soube tocar meu coração. A filha que tive dela, e que chamamos de Francine, aos cinco anos pegou escarlatina. Morreu dia 7 de setembro de 1640. Nunca vou esquecer esta data. Ela marca o dia em que senti a mais pavorosa das dores. 
PASCAL (Comovido): Compreendo.
DESCARTES: (Baixo): Não sou daqueles que pensam que as lágrimas pertencem apenas às mulheres. 
PASCAL: Já vi um homem chorar, não sei porque me lembro dele hoje. Meu pai foi mandado pelo cardeal para reprimir uma revolta de camponeses na Normandia, com as tropas do marechal de Gassion. A coleta dos impostos era brutal. Eu tinha dezessete anos na época e acho que meu pai... enfim, ele era, por sua firmeza, o homem que a situação requeria. Naquele dia, acompanhei meu pai com os soldados, a uma aldeia. Um homem de quem tinham tirado os bens e os instrumentos de trabalho se adiantou para defender sua causa. Mas não conseguiu articular uma palavra. As lágrimas o sufocavam. (Tempo) Naquele momento não me importei. Acho mesmo que me apressei a esquecer a cena. E certo que estava ocupadíssimo com a construção da minha máquina aritmética... (Tempo) com a intenção de facilitar para meu pai o cálculo dos impostos pelos quais ele era o responsável. 
DESCARTES: Algumas pessoas a gente não vê.
PASCAL: Algumas pessoas?
DESCARTES: Aquelas que não pertencem à sociedade que ambos freqüentamos. 
PASCAL: Tem razão. Eu não vi aquele infeliz. Eu o revejo sem tê-lo visto. Que Deus me perdoe.
DESCARTES: Não se pode prestar atenção a tudo, principalmente quando se está ocupado, como estava com o seu invento. O espírito só pode se concentrar num único assunto.
PASCAL: Eu estava cego. Sem a graça divina, para onde vamos?... que vemos? Mas só Deus a dispensa e nós, pobres pecadores, não podemos senão pedi-la.
DESCARTES: Deus, então, decidiu antecipadamente a sua salvação?
PASCAL: Ela é absolutamente determinada por decreto da onipotência divina. Sim, acho que sim. Não acha?
DESCARTES: Absolutamente, não acho.
PASCAL: Não?
DESCARTES: Não. Entendo que o cristão, em nome da fé, se descubra elevado pela razão, na atividade terrestre, e não um brinquedo nas mãos do Criador. Deus me fez livre.
PASCAL: E, no entanto, praticamos o mal, somos atraídos irresistivelmente pelo pecado. Nossa natureza foi corrompida pelo erro de Adão. Nós só podemos fazer o bem se o Senhor o permitir, e essa permissão apenas alguns podem aproveitar...
DESCARTES: (Cético): Sim...
PASCAL: Não acredita?
DESCARTES: Se compreendi bem, não se entra facilmente no Paraíso.
PASCAL: E preciso receber a graça.
DESCARTES: Que Deus economiza.
PASCAL: E cabe a nós julgá-lo?
DESCARTES: De maneira nenhuma. Não, de maneira nenhuma. 
PASCAL: Conhece Antoine Arnauld?
DESCARTES: Não tenho essa honra, mas ele me enviou algumas objeções de pormenor a uma das minhas obras, e aprecio bastante seu espírito.
PASCAL: Não se imagina homem de melhor caráter.
DESCARTES: Seguramente.
PASCAL: E cristão mais fiel a seus deveres e a sua fé.
DESCARTES: Não precisa me convencer: Antoine Arnauld tem toda a minha estima.
PASCAL: Pois bem. Esse homem, que estima, tem a honra e a situação ameaçadas, e ouso pedir-lhe que me apoie em sua defesa.
DESCARTES: Ora. Ameaçado? Por quem? De quê? Que querem dele?
PASCAL: Os Jesuítas acharam conveniente atacar o seu tratado "Da comunhão freqüente". A apologia que ele fez de Jansênio, bispo de Ypres, excitou ainda mais o furor deles. De sorte que ele está hoje a ponto de ser excluído da Faculdade de Teologia e de ser censurado pela Sorbonne. Foi-me assegurado que a sua prisão já foi ordenada e que a detenção é iminente. É, esse homem justo na prisão!
DESCARTES: Tudo isso é lamentável.
PASCAL: Talvez ainda haja tempo de intervir. Talvez não seja tarde. O senhor me ajudaria a salvar Antoine Arnauld?
DESCARTES: Há alguma coisa que se possa fazer?
PASCAL: Eu pensei que uma carta – uma carta assinada por nós dois, ainda que o meu nome seja menos ilustre do que o seu -influenciaria a opinião das pessoas interessadas neste caso.
DESCARTES: Uma carta? 
(Pascal tira um papel do bolso)
PASCAL: Tomei a liberdade de fazer um rascunho.
DESCARTES: Calma, calma. Acabei de embarcar nessa disputa e sei apenas o que me disse. O que não é suficiente para empenhar minha assinatura.
PASCAL: Não há tempo para entrar em detalhes. Se demorarmos... Espero que confie em mim.
DESCARTES: Não me ponha a faca no peito. Ambos sabemos que as Escrituras recomendam socorro a um inocente oprimido mas, no que toca à Teologia, a inocência não tem uma natureza clara e eu não poderia, de minha parte, decidir rapidamente. Como já disse, com tantas preocupações e viagens, coloco-me longe desse tipo de discussão.
PASCAL: Nesta, estão engajadas a verdade e a justiça – e a salvação de um bom cristão.
DESCARTES: Não me explicou há pouco que a sua salvação estava inteiramente à mercê de Deus?
PASCAL: Sabe muito bem que eu falava da salvação da alma. O que está em causa é a liberdade, a honra de um homem nesta vida. E sobre isso não devemos nos fazer de surdos.
DESCARTES: Arnauld merece toda a consideração, mas pode se enganar, de boa fé. Não quero tomar seu partido sem conhecer o fundo do seu pensamento, e francamente, ele pouco me interessa. Não costumo frequentar teólogos.
PASCAL: Desprezaria seus estudos?
DESCARTES: Acho inconsequente apelar para a razão enquanto ela pode servir à defesa de sua tese e recusá-la, desde que a coloque em risco. 
PASCAL (Baixo): Tenta-se compreender e depois se chega ao mistério. E se renuncia a ele. Parece-me que, neste sentido, cada um de nós é teólogo sem saber. Mas a questão não é esta. No seu tratado " Da comunhão freqüente", que lhe valeu tantos aborrecimentos, Arnauld examina a moral, que diz respeito a todos nós. Espero que concorde comigo.
DESCARTES: Não li "Da comunhão freqüente".
PASCAL: O assunto é simples e lhe foi dado pela crônica da corte: comungando de manhã, Madame de Sablé teria direito de ir dançar à noite?
DESCARTES: Tanto barulho por isso?
PASCAL: É que Madame de Sable, que hesitava em tomar uma decisão, teve permissão do seu confessor para ir ao baile. (Tempo)Preciso acrescentar que seu confessor é um Jesuíta.
DESCARTES: E Arnauld, jansenista...
PASCAL: Jansenista, sim. Quem não o seria nessas circunstâncias?
DESCARTES: Não sei...
PASCAL: Apoiaria, por acaso, a opinião do confessor?
DESCARTES: Não, não chegaria a tanto, diria somente que é melhor não ir ao baile quando se comungou de manhã e que uma proibição absoluta, caindo como uma espada, pode parecer bastante severa... (Movimento de impaciência de Pascal) Mas, escute... Madame de Sablé podia ter sido obrigada pela situação, ou pelo marido, a ir ao baile, sem sentir a menor vontade. Deveria ela, com grandes ares, se acobertar na religião para fugir a uma obrigação mundana que não lhe daria, talvez, nenhum prazer? E se, mesmo que não tivesse visto com maus olhos essa obrigação, a Santa Comunhão não poderia, fortificando-lhe a virtude, ajudá-la a encontrar no baile apenas a alegria permitida a uma mulher honesta? Um Jesuíta talvez não seja o único a pensar isso.
PASCAL: Me disse que foi um de seus alunos...
DESCARTES: Eles me ensinaram a não me fixar num só ponto de vista, no que concerne à vida.
PASCAL: E no que concerne a Deus?
DESCARTES: Deus está em nós. Cada um lhe empresta o seu rosto. Ainda que aceitemos as diferenças dos nossos traços, estamos sempre prontos a nos matar porque não vemos nem escutamos o mesmo Deus.
PASCAL: Mas há as Escrituras e elas falam a todos na mesma língua.
(Tempo) Não posso segui-lo... 
DESCARTES: Talvez lhe fizesse bem viajar...
PASCAL: Viajar?
DESCARTES: Lembro-me da desventura que me aconteceu, há muito tempo. Eu regressava pela Hungria, a Boêmia e a Alemanha do Norte, de um giro pelo leste da Europa. Uma noite, cheguei às margens do rio Elba, que eu devia atravessar para chegar à Frísia ocidental, onde contava passar algum tempo. O barco estava lá e eu o aluguei apesar dos marinheiros não me parecerem com boa cara. Era visível que eles me tomavam mais por um mercador rico do que por um cavalheiro, e quando estávamos no meio do rio eu os surpeendi tomando uma decisão a meu respeito. Ignoravam que eu falasse sua língua e combinavam, livremente, me matar a pancadas e se aproveitar dos meus despojos, depois de me jogarem na água. Então, de repente, levantei, saquei da espada, encostei-a na garganta do chefe e ordenei, no idioma dele, que me conduzisse ao meu destino. O que ele fez sem que nada mais ousasse contra mim.
PASCAL: Vejo que tem o braço tão ágil quanto o espírito.
DESCARTES: Tão rápido que se o miserável tivesse se mexido eu lhe cortaria a garganta e o expediria para o inferno. Teria eu o direito, diante de Deus? Mas se eu fraquejasse era ele que me matava, e como nunca se tem certeza de viver em estado de graça, eu teria assumido um enorme risco diante do Céu. Se me dissesse que eu deveria ficar quieto no meu quarto em vez de me encontrar naquela noite de novembro às margens do Elba, teria toda razão. Mas, enfim, eu tinha embarcado.
PASCAL: Que está querendo me dizer?
DESCARTES: Bem, que a teologia não pode responder a tudo, claramente. Que em certos momentos a vida prevalece sobre a reflexão, e que é preciso saber decidir rapidamente sem pesar demais os desígnios atribuídos a Deus. Falo tanto por Madame de Sablé, como por mim. Nós dois já tínhamos embarcado. Ir ao baile ou ficar no seu oratório... Transpassar meu futuro ladrão ou me deixar matar. Os teólogos têm muito que debater sobre esse assunto.
PASCAL: Se me permite, voltemos a Antoine Arnauld. Conhece suas ligações com Port-Royal. Os religiosos que estão sob suas ordens têm toda sua confiança, e se alguma mesquinharia viesse privá-los de sua orientação...
DESCARTES: Que Deus o livre.
PASCAL: Mas ele não vai livrá-lo se não fizermos nada em favor de Arnauld... 
DESCARTES: Vou lhe falar sem rodeios: como homem, Arnauld tem toda minha estima, já disse, mas me empenhar por ele neste caso é dar meu aval a um partido...
PASCAL: Um partido?
DESCARTES: A palavra lhe parece forte? Toda novidade em matéria de religião cria um partido. E, daí, uma divisão no Estado. Isso não ocorre sem perigo.
PASCAL: Eu não lhe faria a afronta de pensar que teme por si mesmo...
DESCARTES: Não seria uma afronta. Minha próxima partida me preserva de todo perigo. Ninguém vai me procurar em Estocolmo. Não, não corro nenhum risco se puser minha assinatura na sua carta. Ela faria boa figura, admitamos, e não me custaria mais do que uma esmola. Mas nunca dei meu nome de esmola, e não concordando, no fundo, com Arnauld, eu lhe faria uma injúria, separando sua pessoa, que respeito, de sua religião, que reprovo.
PASCAL: Argumentos, enquanto se persegue um inocente! A razão sempre prevalece sobre o seu coração?
DESCARTES: Neste caso, sim. 
PASCAL: Então, não tenho mais nada a dizer. Perdoe-me pela iniciativa...
DESCARTES (Cortando-o): Que só o honra. (Pascal se retorce, de repente, na cadeira, leva a mão ao peito, e vira a cabeça para trás. Preocupado, Descartes se levanta e dá um passo em sua direção.) Que acontece?(Pascal faz sinal com a mão de que não pode responder. Em silêncio, Descanes o observa. Finalmente, Pascal abre os olhos.).
PASCAL: Desculpe.
DESCARTES: Quer que eu chame um médico?
PASCAL: Ele nada pode fazer por mim. (Descartes vai fechar a veneziana, da janela) De nós dois, sou o mais velho.
DESCARTES: Parece sentir frio.
PASCAL: Só a febre me aquece. 
(Descartes vem se sentar ao lado de Pascal.)
DESCARTES: Se sofre do estômago, eu recomendo uma infusão de tabaco numa bebida quente.
PASCAL: Duvido que faça efeito para a minha enxaqueca, que me deixa em paz apenas algumas horas, à noite.
DESCARTES: Lamento muito. 
PASCAL: Não lamente: o sofrimento me une a Jesus Cristo. Em mim, é o que mais amo.
(Descartes se levanta e vai acender a vela que se encontra sobre a lareira.)
DESCARTES: Posso confessar que, de minha parte, prefiro ter saúde?
PASCAL: Fique à vontade.
DESCARTES: Não aprecia a saúde?
PASCAL: Pode-se fazer bom uso dela.
DESCARTES: A minha me permitiu seguir a natureza e amar plenamente a vida. 
PASCAL: Estou com frio.
DESCARTES: Quer um coberto?
PASCAL: Não seria o bastante. Na minha casa, tenho chinelos embebidos em álcool para esquentar os pés, porque não posso nem mesmo caminhar. (Tempo)Mas esqueçamos meu corpo. Isso não é assunto de conversa.(Tempo. Ele mostra a espada, que está no canto.) Uma espada, numa cela?
DESCARTES: Serviu-me muito pouco.
PASCAL: No entanto, foi soldado...
DESCARTES: Um soldado espectador, mais preocupado em observar as trocas de golpes do que em dá-los.
PASCAL: Me contaram que se bateu em duelo, uma vez...
DESCARTES: Há muitos anos. Desarmei meu adversário e lhe dei a graça da vida com a condição de que fosse ver – sem a espada – a dama por quem se batera. (Tempo) Escrevi um tratado de esgrima ao sair do colégio. 
PASCAL: Alguma coisa em mim o inveja.
DESCARTES: O que me lisonjeia.
PASCAL: É, invejo a sua indiferença. Seria preciso aceitar o pensamento da morte. Ainda não consigo. Se minha alma não a temesse, meu corpo, talvez, fosse menos doente.
DESCARTES: E se amasse um pouco mais o seu corpo, se fosse com ele menos severo? Pode ser, então, que sua alma...
PASCAL: Não tenho nenhum desejo de me interessar pelo meu corpo.
DESCARTES: Então, eu não disse nada. (Tempo) Sua religião é terrível!
PASCAL: Exigente com os que a praticam, sim, reconheço. Mas eles são os mais inocentes, as melhores pessoas do mundo. Rezam, estudam, praticam o bem. Com que se ofusca o poder? E, no entanto, sua cólera cai sobre eles.
DESCARTES: Talvez tenha suas razões.
PASCAL: Se o poder está contra Port-Royal, é por causa dos Jesuítas – e sabe-se do que é capaz um Jesuíta. Vou escrever sobre isso. Serei talvez o único, mas vou escrever, esteja certo.
DESCARTES: Teremos uma bela obra, seguramente. Não demore a empreendê-la. Servirá, com certeza, aos interesses dos seus amigos. (Tempo) Ontem, eu passeava pelo Pont-Neuf – eu já disse, creio, que gosto de flanar –, quando um pobre homem me abordou para me pedir, humildemente, uma esmola. Estava tão miseravelmente vestido que o reconheci apenas depois de um bom tempo. Entretanto, há alguns anos esse homem me salvou a vida. Era inverno – um inverno rigoroso – e eu viajava pelo norte da França, na Picardia, quando, uma noite, no canto de um pequeno bosque, meu cavalo caiu no gelo, e eu fiquei embaixo dele, a perna presa, aturdido com a queda, e tão fraco, que senti a morte chegar com o frio, sem forças para pedir socorro. Então perdi os sentidos. Ao voltar a mim, estava numa cabana, estendido sobre palhas, e o homem que me tinha salvo me olhava com um sorriso, à luz do fogo que ele havia aceso. Eu tinha febre e prestava pouca atenção às palavras que ele me dirigia, até o amanhecer. (Tempo) Um grande conversador esse pobre homem, e um simples de espírito, pois enquanto me curava se propunha seriamente me explicar os mistérios da Trindade, da natureza humana de Jesus e não sei mais o quê. Ah, sim, me lembro: ele pretendia saber a composição do leite da Virgem.(Pascal se levanta bruscamente e olha Descartes fixamente) Não preciso mencionar que não dei nenhuma importância àquelas bobagens. Em compensação, nunca esqueci a bondade daquele homem, e todo o cuidado que teve comigo naquela noite de inverno.
PASCAL: (Num sopro): Frei Santo Ângelo...
DESCARTES: Exatamente. Creio que o conhece. Frei Santo Ângelo, um capuchino. Jacques Forton era seu nome verdadeiro.
PASCAL: Ele contou que...
DESCARTES: Contou que há alguns meses um jovem, muito piedoso, tinha vindo vê-lo para que lhe explicasse em detalhes sua compreensão dos mistérios. Em seguida, o jovem o denunciou, com documentos de prova, como herege, ao arcebispo de Ruão. Ele foi, então, obrigado a largar a batina e a fugir para longe da província onde passava a vida a socorrer os pobres. E foi assim que ele se tornou mendigo no Pont-Neuf, onde o encontrei. 
PASCAL: (Baixo) Eu nunca quis isso.
DESCARTES: Mas, no entanto, o denunciou.
PASCAL: Podia-se aceitar que ele espalhasse pelos campos...
PASCAL: Ora, de todas as pessoas a quem ele assistia e que conheciam suas histórias, talvez tenha sido o único a levar a sério suas bobagens. Em contrapartida, ele fazia caridade – a mesma que ele pede agora. Duvido que a religião tenha ganho nesta questão.
PASCAL: Um Capuchino é um homem de Deus. Frei Santo Ângelo, com sua batina, exercia autoridade sobre as almas. Ele era responsável.
DESCARTES: Diante do Céu.
PASCAL: E diante da religião.
DESCARTES: Não acho que ele a colocasse em grande perigo.
PASCAL: Não se pode tocar nos mistérios e pretender explicá-los.
DESCARTES: Havia suas palavras – que não importavam a ninguém – mas havia sua bondade, sua alegria e sua inocência. Que ajudaram a muitos. Reencontrei um homem amargo e que não compreende o abandono do céu. Que podia eu dizer a ele? (Tempo) Não creio que você tenha feito bem.
(Pascal se senta, de novo, lentamente)
PASCAL: Não sei mais. Pensei estar com a verdade, mas agora não sei mais. A verdade de Deus não era, talvez neste caso, a minha.
DESCARTES: Agiu sozinho?
PASCAL: Sim... Enfim, não. Amigos me encorajaram. Acreditavam, como eu, nos mistérios, e no respeito que os cristãos lhes devem. Agimos para salvaguardá-los.
DESCARTES: São sem dúvida esses amigos os responsáveis pelo fato de ter se dado a Deus, segundo um novo caminho.
PASCAL: Esses amigos são adeptos de Jansênio, bispo de Ypres. Não era isso o que queria que eu contasse? 
DESCARTES: Bem, acho que seus amigos nunca serão os meus.
PASCAL: Não é o único a não gostar deles. Tem a seu lado o poder, a Sorbonne e a Companhia de Jesus. São os poderosos aliados, e aposto que logo a tempestade vai cair sobre o vaie de Port-Royal.
DESCARTES: Não pense que me alegro com isso. Não é do meu feitio ficar contente vendo pessoas sofrerem por suas convicções. Cada um deveria pensar à vontade e dize-lo à sua maneira e sem medo.
PASCAL: Os jansenistas não precisam dessa esmola.
DESCARTES: Esmola?
PASCAL: Eles não querem dever a vida a essa espécie de acomodação que esta pregando, mas à verdade – a verdade divina.
DESCARTES: E, por acaso, é dela detentor?
PASCAL: Está nas Santas Escrituras. Me foi suficiente procurá-la.
DESCARTES: Encontra-se o que se quer nas escrituras.
PASCAL: Quer dizer que eu teria posto, de propósito, o que não estava lá? E isso que pensa?
DESCARTES: Não foi o que eu disse.
PASCAL: Disse, sem de fato dizer.
DESCARTES: Não se esquente e admita que o poder...
PASCAL: Tomaria seu partido nesse caso?
DESCARTES: Não duvido um instante que os senhores de Port-Royal sejam os melhores homens e os mais aptos a ocupar uma posição no Estado. Mas que fazem eles? Sob o pretexto de que o mundo é fundamentalmente mau, irreformável, eles se retiram para o deserto a fim de respirar ares menos corrompidos... e de se preservar das tentações entre santas pessoas.
PASCAL: Para encontrar a salvação.
DESCARTES: É exatamente o que eu dizia. Acha que o príncipe pode suportar por muito tempo que homens, para os quais ele fez planos, se esquivem assim aos cargos com que pretendia dignificá-los, a fim de trabalhar para a prosperidade e a grandeza do reino?
PASCAL: É o rei que faz esta vida aceitável? Tem ele o poder de nos preservar da morte, do mal, da danação? Por melhor príncipe que seja, seu reino está vinculado ao pecado original, e não seria uma loucura encontrar uma razão neste mundo?
DESCARTES: É preciso viver aqui – e o melhor que se pode.
PASCAL: Sim, o tempo de nos preparar para a verdadeira vida que nos espera além das ilusões e das tristezas de que somos prisioneiros. (Tempo)
DESCARTES: Dir-se-ia que, para você, dar à criatura é retirar do Criador.
PASCAL: O Criador nos fez para ele e sem ele nada podemos.
DESCARTES: Nós podemos não nos odiar, como você gostaria que fizéssemos. E preciso nos amarmos um pouco, me parece, se queremos amar. E você não se cansa de lutar consigo mesmo e de cuspir no próprio rosto.
PASCAL: Eu apenas amo Cristo em mim.
DESCARTES: Ama-o dilacerando-se, imolando sua razão e sua liberdade. Não o ama senão provocando medo em si mesmo. Estranho amor.
PASCAL: (Baixo) Eu não admito minha condição humana.
DESCARTES: É isso, não a admite.
PASCAL: Ah, se eu não tivesse a esperança... (Tempo) Quando alguém, se viu, durante noites seguidas, se transformar em seu próprio cadáver? Quando se respirou seu próprio fedor? Quando se tocou sua própria lama?
DESCARTES: Pare de deleitar-se com o seu enterro. Não se pode passar o tempo a esmiuçar a fraqueza e a gemer sobre sua imagem. A despeito do que pensa, não sou mais forte e não vou lhe dar minha coragem como exemplo. Sou prudente... E quando digo prudente... Sabe que passei três anos trabalhando numa obra onde sustentei a opinião de Copérnico relativa ao movimento da Terra em torno do Sol? Ora, assim que eu soube da condenação de Galileu por ter sustentado a mesma tese, renunciei a publicar meu livro. No entanto, como ele, estou seguro que a Terra gira em torno do Sol. Mas preferi não dizer esta verdade porque podia ser, para mim, uma fonte de aborrecimentos.
PASCAL: Eu não o sabia tão preocupado em estar de acordo com a Igreja.
DESCARTES: Ela é poderosa e desconfiada... e eu não sou corajoso todos os dias. 
DESCARTES: (Se levanta e é imitado por Pascal) Não temos mais muito tempo. Preciso me preparar para a partida, e seria deplorável que nos deixássemos sem nos dizer nada. Haveria, acho, coisa melhor para fazer.(Descartes convida Pascal a se sentar, de novo, depois vai pegar, sobre a lareira, um maço de folhas que põe sobre a mesa) Se há alguém que possa tratar disso que comecei, é você. Ninguém mais. De todos os homens desta época. Sei que não faz grande caso da sua inteligência e que se empenha, a todo custo, em tentar diminuí-la. Mas é à sua inteligência que faço um apelo. Ela pode tomar o lugar da minha e levá-lo onde eu não terei, sem dúvida, tempo para chegar. (Tempo) Não me basta acreditar: eu quero saber. Isso seria pecado a seus olhos? 
PASCAL: (Baixo e num tom patético) Sou de uma ignorância terrível e a parte de mim que pensa o que digo, não se conhece mais do que o resto. Vejo apenas infinitos que me fecham como num átomo e de mim sei apenas que sou aqui uma sombra sem retorno e de pouca duração.
DESCARTES: Um homem do seu mérito, da sua qualidade, não deveria aplicar todo o gênio a serviço do pavor. Vou mais longe: me perguntei, algumas vezes, ouvindo-o falar, se não havia um sistema na sua desolação, e eu o veria de bom grado, desde que se pusesse a filosofar, a retomar contente o fio dos seus gemidos.
PASCAL: (Levantando-se): Se me vê dessa maneira é que eu não soube me fazer conhecer. Meu talento tem limite: não posso ultrapassá-lo. Nós não nos pertencemos e não somos daqui.
DESCARTES: Nossa inteligência nos pertence. O Criador nos deu o dom de administrá-la. Pela última vez, apelo para o seu espírito. Use-o. Aplique-o nas ciências em vez de lutar contra ele.
PASCAL: Esse dom me fez tocar o fundo da minha ignorância.
DESCARTES: E, no entanto, sabe que o universo é função da medida e do número. Espaço e tempo que são ligados... sim, ligados no movimento. E que se pode calcular o movimento.
PASCAL: Sim.
DESCARTES: Aceitaria trabalhar a partir dessa afirmação?
PASCAL: A que eu chegaria? A uma equação? Não me faça rir.
DESCARTES: A uma equação, efetivamente. A uma equação onde viriam se esclarecer, fundamentando-se, todas as leis do universo. Isso nada seria?
PASCAL: O que aspiro está acima da matemática. (Tempo) É tarde. Tomei demais seu tempo e o decepcionei. Perdoe-me. Não compreendo mais a linguagem dos números e preciso de uma resposta.
DESCARTES: Precisa sobretudo procurá-la, e procurá-la sofrendo! 
PASCAL: Sofrer me conduz para onde vou.
DESCARTES: Prefiro encontrar alegrEmente – ou, pelo menos, tentar. 
(Descartes vai até Pascal e aperta sua mão) Adeus. Não nos podíamos dar nada, mas não vou esquecê-lo.
PASCAL: Talvez a gente se encontre.
DESCARTES: Aqui, eu duvido. Faz muito frio no país da rainha das neves.
(Depois de uma hesitação, Pascal sai. Tempo. Descartes levanta lentamente a vela, à altura do rosto, e a apaga. Cortina.)
*Jean-Chaude Brisville é dramaturgo francês; compôs: Saint-Just (1957), Le Rôdeur (1972), Le Fauteuil à Bascule(1982) e Le Bonheur à romorantin (1983). Este Entretitn de M. Descartes avec M. Pascal le Jeune foi estreado no Petet Odéon em 22.10.85, sob a direção de Giorgio Strehler.
Tradução de Edla van Steen.