Por: Arlindo Nascimento Rocha*
Comparar
dois filósofos, nunca foi tarefa fácil, principalmente quando se trata de dois
pensadores tão distantes e pertencentes a épocas e culturas tão diferentes.
Mas, a reflexão filosófica nos permite encontrar nexos importantes, pois, a história
do pensamento, a despeito das suas variações, continua sendo uma, embora com
nuances e particularidades inerentes à própria cultura de cada época.
O
que nos permite fazer isso, é que nenhum filósofo é uma ‘ilha’. Por de trás do
seu pensamento está um vasto manancial de influências e experiências acumuladas
de centenas, para não dizer, de milhares de anos de evolução do pensamento. Isso,
naturalmente, nos permite afirmar que, todo filósofo concebe ideias dentro de
uma determinada visão de mundo, embora possa não estar necessariamente imerso
nesse quadro circunstancial, pois, suas ideias acabarão transcendendo espacial,
temporal e historicamente épocas delimitadas, pois, filósofo algum, jamais
produziu apenas para sua época. Aliás, muitos nem sequer foram (re)conhecidos,
pois, estavam à frente do seu tempo e, por isso, não foram compreendidos, ou
foram mal interpretados. Logo, é legítimo assegurar que os grandes filósofos
não são filhos desta ou daquela época, mas, amantes da sabedoria.
Então,
para que possamos estabelecer com firmeza essa comparação, precisamos entender
e respeitar a incompletude de cada um, acompanhar suas hesitações e lacunas,
aceitar seus lapsos, reproduzir a ordem e a desordem das visões filosóficas em
construção, embora longe da formulação definitiva.
Por
isso, assumir o desafio de estabelecer uma comparação entre Plotino, um dos
principais filósofos gregos do séc. III e representante do neoplatonismo que
reúne em parte, a herança da filosofia greco-judaica e Blaise Pascal, a
principal referência da tradição platônico-agostiniana na frança do séc. XVII,
que melhor enxergou no homem suas contingências e possibilidades, situando-o
entre extremos incomensuráveis (tudo e o nada, finito e o infinito, grandeza e
pequenez), incapaz de dar conta da sua própria situação como ser do mileu (meio), é uma missão quase que impossível.
Mas, fazer isso é tentar ao mesmo tempo, entender através de um recorte temático
comum, não a construção de um sistema filósofo, mas, uma reflexão e um
contributo para a história e evolução do pensamento.
A
reflexão filosófica sobre o homem e sua relação com o mundo (cultura, arte, política,
religião), acompanha a evolução da história da filosofia, pois, é um tema que é
objeto de reflexão dos principais filósofos que o colocaram no centro das
discussões. Naturalmente, Plotino e Pascal não fugiram a esse desafio. Pascal,
um dos expoentes da filosofia francesa, provavelmente, foi um dos que mais
refletiu sobre o homem em sua época. Mas, grande parte do que expôs, está
ligado a uma construção ulterior, iniciado com Platão, Agostinho, Tomás de
Aquino, Cornélio Jansênio, Lutero, Calvino até chegar, finalmente a ele, um
fiel discípulo de Agostinho que, certamente leu Plotino, mais especificamente O tratado sobre o belo das Enéadas,
pois, não logrou os ensinamentos de Platão diretamente, mas, através dos
neoplatônicos.
Naturalmente,
é frutífero ver a reflexão filosófica sobre esse tema a partir dos dois
paradigmas que fundaram a tradição filosofia clássica ocidental: o platônico e
o aristotélico. O primeiro é dualista, cujas raízes estão solidificadas na
doutrina religiosa, no temor humano da morte, no anseio pela imortalidade e nas
experiências mal compreendidas, enquanto que o segundo é inspirado, primeiramente,
na tradição biológica e funda-se no prazer positivo que excita na alma o
sentimento que chamamos de amor, invertendo assim, a solução teórica do
platonismo, afirmando que é preciso encontrar o universal, mas, é preciso
investigar também, o particular sensível.
Mesmo
assim, o legado e o impacto do platonismo na cultura ocidental teve uma
importância capital. Por um lado, foi transmutado e transformado por Plotino
(fundador do neoplatonismo que desenvolveu a ideia de uma divindade única, superior
e transcendente que governaria o mundo) e, por outro, combinado com a doutrina
cristã agostiniana, a principal influência filosófica de Pascal na modernidade.
Plotino
viveu numa época em que esses dois paradigmas (platônica e aristotélica), eram
dominantes, mas, o debate entre estes, nomeadamente, o estético em especial,
ganhou novos contornos em seus tratados estéticos. Ele foi notável, não pela
sua obscuridade, mas, pela sua doutrina acerca da beleza inteligível. Diferente
do dualismo platônico, imaginava uma natureza animal, diferente da alma e do
corpo, a quem pertence a sensação. Ele entendia por sensação, a percepção de
coisas externas que produzem ilusões, mas, permitiam com a ajuda da
inteligência, o juízo. Sendo assim, as imagens que usava, lembram muito a ‘Caverna
de Platão’, mas, diferente deste, seu pensamento foi permeado pela experiência de
unidade. Tudo é um; mesmo as imagens refletidas na ‘Caverna’. O que está
subjacente a essa ideia é a ideia de ‘Uno’, que é imanente e transcendente.
Para
ele, a sensação é contemplação pura, pois, é pelo seu exercício que se contrai,
contemplando-se a si mesmo à medida que se contempla a beleza de uma obra.
Sendo assim, as belezas exteriores nos encantam pelo fato de serem a manifestação
dos tesouros do interior. Por isso, devemos organizá-las de acordo com o mundo
inteligível que constitui o caminho de volta para o reino espiritual. Nesse
aspecto, a beleza sensível é uma beleza secundária que se deriva da beleza
suprassensível do ‘Uno’, logo, a beleza que conhecemos é o reflexo de outra
beleza mais perfeita. Então, tudo será mais belo quanto mais participar da
beleza suprassensível. Sendo assim, o belo, isto é, a beleza verdadeira apenas
existe no intelecto, ou seja, no nosso interior, onde o contemplamos como se
fosse o próprio Deus.
Plotino,
exaltara em sua obra que o belo situa-se em um lugar secreto, pois, o caminho é
mais longo, ou seja, para além da obra, para o inauditável. O belo tem nele, o
condão de fazer o homem conectar-se consigo mesmo e fazê-lo (re)lembrar sua
origem divina, pois, é o esplendor do verdadeiro, é radiante e torna-se
sensível na arte. Paradoxalmente, a beleza sensível, apenas é a força motriz
que conduz o homem a contemplar o belo incorpóreo, pois, revela algo que o
transcende, ou seja, algo inteligível. Ele expôs suas ideias no Tratado sobre o belo (início das
Enéadas), que é, certamente, o escrito mais conhecido e comentado. Nele
encontram-se críticas dirigidas às teorias estéticas de Aristóteles e dos
aristotélicos que fundam a beleza na simetria e na ordem.
Exerceu
forte influência no pensamento estético da Idade Média e no Renascimento,
refletindo em toda a concepção artística. Influenciou Agostinho e deu
importante contribuição ao neo-platonismo renascentista. Na narrativa
autobiográfica de Agostinho observa-se como o neoplatonismo o fascinara. Logo,
é verossímil afirmar que, certamente, Plotino também terá influenciado Pascal
através do seu mestre, principalmente no que tange a sua visão mística, pois,
ele mostrava-se um verdadeiro guia espiritual, indicando o caminho pelo qual se
deve ir até chegar ao término desejado.
No
caso de Pascal, como se sebe, ele foi o grande místico e apologeta e, através
da sua principal obra Pensamentos
queria persuadir os incrédulos e indiferentes, sobre a importância de acreditar
que, além da(s) beleza(s) contingentes do mundo físico e de tudo que habita
nele, existe um ente supremo que transborda e carrega toda beleza e a verdade.
Plotino o define como o ‘Uno’, e Pascal como o ‘Deus absconditus’, isso porque ele se encontra distante e escondido dos
homens desde os primórdios. Por isso, muitos vivem procurando por ele, na
beleza das coisas sensíveis presentes na natureza (uma paisagem, o por do sol, uma
obra de arte, um jardim florido), todos refletindo a cópia imperfeita de uma
realidade além da nossa visão física, incapaz de contemplar a verdade, o bem e
o belo em si.
Ao
longo da sua obra, certamente, Pascal não se preocupara, efetivamente, com uma
estética propriamente dita, no entanto, é crível afirmar que, a semelhança de
Plotino, ele não valorizava a beleza sensível das coisas, pois, ambos, partem
do pressuposto que a verdadeira beleza reside em outra dimensão, ou seja, no
transcendente e não no imanente, e que o imanente é apenas a manifestação
imperfeita da beleza suprema do transcendente, como já havia afirmado Platão em
sua teoria das ideias ou das formas.
Desta
forma, é inegável que existe um nexo, ainda que tênue que os une, pois, é
possível enxergar a influência da visão platônica nos dois pensadores. Plotino
por ter transformado o platonismo, certamente, foi o mais influenciado, pois,
Pascal só chega a Platão indiretamente através de Agostinho. No entanto, em
ambos, a valorização do transcendente e, nesse caso específico, o da verdadeira
beleza além da mera aparência, configura-se como um nexo onde é possível
identificar nos dois, semelhanças que os torna herdeiros de uma mesma tradição
no qual muitos pensadores forjaram suas identidades filosóficas.
Atualmente,
com a supervalorização dos corpos e da beleza física, ou seja, do predomínio
ditatorial da beleza, em certos casos, é um indicador da decadência da
humanidade. A ‘cultura da beleza’ tornou-se a expressão incontestável da super
exposição dos corpos contrariando, o “Cogito, ergo sum”, ou seja, o “Penso, logo existo” (cartesiano) que ganhou um novo
significado “Posto, logo existo”, pois, no mundo virtual das mídias
sociais, a beleza passou a ser editada e reeditada com filtros dando a todos a
possibilidade de se apresentarem de forma a agradar aos outros. Chegamos ao
ponto em que a beleza espelhada nas mídias sociais, não
existir na realidade.
Nesse
sentido, o predomínio e o cultivo exacerbado da falsa beleza externa coloca um
problema de fundo cultural, político civilizatório, educativo e de doação de
sentido. Precisamos olhar mais para as civilizações orientais, onde existe uma
cultura que valoriza cada vez mais a interioridade, a verdade, a
espiritualidade, o ser [...], pois, nós, no ocidente, caminhamos para o
desconhecido. Ou seja, para uma cultura trivial que hipervaloriza a exterioridade
em detrimento da interioridade, cuja pretensão falaciosa da aparência e do
físico perfeito ser revelador do belo em si, apresentado em belas imagens nas
mídias sociais.
Dante disso,
precisamos nos tornar o que nós somos, conhecer a nós mesmos, através do
exercício da transpessoalidade, ou seja, trabalhar nosso sentimento de beleza e
verdade interior, redescobrir o que nos habita no mais profundo sentido da
palavra: ‘torna-te quem tu és’ nietzschiano
ou “conhece-te a ti mesmo”
socrático. Isso será possível através do autoconhecimento que implica,
exatamente, a dimensão espiritual do ser humano cuja finalidade é afastar o
homem de uma ‘secular ignorância’ a começar pela ‘ignorância de si mesmo’ que é
o princípio da sabedoria, como apontava sabiamente Sócrates.
*Doutor em Ciência da Religião pela
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – Brasil.
Niterói, aos 08/03/2021
ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO "MINDEL INSITE" CABO VERDE