Só
nos interessaremos aqui por um único tema: o do pensamento ou da razão,
enquanto nela consiste justamente a dignidade do homem, segundo o que sabemos
da "Conferência A.P.R." – e do bloco "Grandeza" –, ou pelo
menos de sua pars destruens, antifilosófica. Privilegiamos esse tema para
colocar em evidência a diferença radical de problemática entre as duas
antropologias, que partem de um mesmo ponto cartesiano, o pensamento de si.
Um começo cartesiano: o pensamento do
homem e o divertimento
O
fragmento La 620 manifesta de maneira surpreendente a mudança radical de
problemática que desejamos acentuar. Como outros fragmentos, começa de maneira
literalmente cartesiana. Mas, à diferença dos fragmentos textualmente vizinhos,
faz sobressair a novíssima reflexão sobre o divertimento. Demonstremos esse
ponto.
Eis
a primeira parte de La 620: "O homem é visivelmente feito para pensar. É
toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever está em pensar
como deve [comme il faut]. Ora, a ordem do pensamento é começar por si, e por
seu autor e fim." Nada é mais cartesiano: o pensamento como essência do
homem, sua dignidade e seu mérito. E seu dever: pensar como deve; isto é,
segundo a ordem, ou seja, o método, "ordem" que chega imediatamente: a
ordem do pensamento. A ordem do pensamento é pensar segundo a ordem. Como
Descartes diz a Mersenne em suas Meditationes em novembro de 1640:
trato aqui "de todas as primeiras coisas que podemos conhecer
filosofando com ordem". E a ordem prescreve começar por si (Meditatio II),
por seu autor (Meditatio III) e seu fim. A primeira parte
de La 620 poderia perfeitamente estar no bloco "Grandeza". Pensemos
no fragmento La 113: "Não é do espaço que devo procurar minha dignidade
[entendamos rigorosamente o homem como res extensa], mas da ordenação do
meu pensamento." Ela poderia também ser aproximada de La 200 (o segundo
fragmento sobre o "caniço pensante"): "Toda nossa dignidade
consiste pois no pensamento. É daí que temos que nos elevar (...). Trabalhemos,
pois, para pensar bem: eis o princípio da moral." Entendamos: temos o
dever de pensar como se deve: a moral também está submetida à jurisdição da
ordem. Dito de outra forma, a primeira parte de La 620
poderia perfeitamente pertencer à primeira antropologia. Ela é também muito
próxima de La 756, intitulado "Pensamento": "Toda a dignidade do
homem está no pensamento." Mas tão logo a dignidade era reconhecida, La
756 acionava a contrariedade característica da primeira antropologia, marcando
a própria ambivalência do pensamento, admirável e tolo, grande e baixo:
Toda a dignidade do
homem está no pensamento. Mas que é o pensamento? Que tolo! O pensamento é,
pois, uma coisa admirável e incomparável por sua natureza. Seria preciso que
tivesse estranhos defeitos para ser desprezível, mas os tem tais que nada é
mais ridículo. Como é grande por sua natureza! Como é baixo por seus defeitos!
Eis
uma reflexão típica da primeira antropologia: grandeza e baixeza em um mesmo
sujeito. Comparemos agora com La 620. Veremos que o mesmo começo cartesiano
conduz a uma outra coisa. Não a uma desvalorização do pensamento, ao mesmo
tempo grande e baixo, mas à oposição com o pensamento do mundo – esse mundo tão
ausente da primeira antropologia (e a fortiori, o tema da "vaidade do
mundo "): "Ora, em que pensa o mundo?" Donde o surgimento do
divertimento como pensamento mundano: "Nunca nisso, mas em dançar, tocar
alaúde, cantar, fazer versos, passar o anel etc... e em combater, fazer-se rei,
sem pensar no que é ser rei e ser homem." Pascal articula então,
opondo-os, o pensamento de si (segundo uma marca cartesiana tanto literal
quanto rigorosa) e o pensamento do mundo (que não tem mais nada de cartesiano).
"Pensar
no que é ser rei e no que é ser homem": eis exatamente o começo da segunda
antropologia. Pensar no que é ser rei e no que é ser homem é, para o rei, um
mesmo e único pensamento. Para nós, o pensar em si mesmo como rei é divertir de
pensar a si como homem: por isso podemos nos divertir "tornando-nos rei"
quando não somos rei. Para o rei, porém, que não se diverte pensando em se
tornar rei, mas a quem "as pessoas" procuram divertir porque ele é
rei, "pensar nele", é pensar nele enquanto rei, ou seja,
"considerar e fazer uma reflexão sobre o que ele é", e desse modo
pensar nele enquanto homem: "O rei está cercado de pessoas que só pensam
em diverti-lo e em impedi-lo de pensar em si mesmo. Porque ele fica infeliz,
embora seja rei, se pensar em si", ou seja, se ele pensa em si como rei
(revoltas, mortes, doenças inevitáveis) e como homem, em razão das "mil
causas essenciais de tédio" que lhe valem "o estado próprio de sua
compleição". Vemos imediatamente que essa nova antropologia não é
"abstrata". Trata-se do rei em sua diferença em relação com "as
pessoas comuns", somente porque o modelo real permite universalizar a
instabilidade sentida pelas pessoas comuns, na diversidade de sua "busca
pelas coisas". O modelo real não tem outra função a
não ser assegurar a universalidade da instabilidade do divertimento.
Sobretudo,
porém, assistimos aqui a um novo sentido de pensar em si. Pensar em si não é
mais pensar no conceito de si (res cogitans), em Deus como seu autor e seu fim,
mas em si socialmente e existencialmente, em si como rei e como homem que, não
se divertindo, seca-se de tédio. Não se trata mais de si como ordem do
pensamento (o si como primeira coisa que podemos conhecer filosofando com
ordem), mas de si como de um novo objeto de pensamento e, por isso mesmo,
segundo um novo sentido de pensar. É por isso que Pascal multiplica os
sinônimos de pensar. Pensar em si para o homem é
"considerar-se", "considerar e fazer uma reflexão sobre o que
ele é", ver [pela visão de] "o que ele é", "pensar em
nós" etc. Mas esse "o que ele é" não se refere mais à essência e
sim à existência: pensar o que se é, é pensar seu presente (e não mais estar
"no pensamento do futuro", La 36), é pensar sua finitude. Pois,
pensar sua existência é "sentir [seu] nada" (La 36). Em outros
termos, Pascal conserva o conceito cartesiano de evidência (pensar em si é
pensar dentro da evidência), mas a evidência é a de um
infortúnio, um tédio, um nada. É por isso que acreditamos poder mostrar que era
uma contradição e não uma substituição que se encontrava no princípio do
divertimento: o divertimento decorre de uma contradição entre a evidência e o
gozo. É preciso pensar uma verdade que não traga gozo e um gozo que não seja
verdadeiro.
Podemos
ver que essa análise e o novo sentido de pensar que dela emana não
podem mais decorrer da primeira antropologia, assim como não podem decorrer do
conceito cartesiano estrito de pensamento do qual partia, no entanto, a
reflexão pascaliana. Pensar em si definitivamente não é mais se
pensar: a evidência do pensamento de si faz ter acesso ao tédio.
A glória: a razão do homem como
alienação de seu pensamento
No
fragmento La 411, intitulado "Grandeza do homem" – sem, no entanto,
classificá-lo no bloco "Grandeza" –, Pascal faz sua a inovação
cartesiana que consiste em chamar de "ideia" alguns de meus
pensamentos (segundo um vocabulário ainda cartesiano). Eis o fragmento La 411:
"Temos uma ideia tão grande da alma do homem que não podemos
tolerar ser desprezados por ela e não gozar da estima de uma outra alma. E toda
a felicidade dos homens consiste nesta estima". O que faz então com que
esse fragmento não conste no bloco "Grandeza"? Como podemos ver
imediatamente, trata-se da prova dada da própria grandeza: "não podemos
tolerar (...) não gozar da estima de uma alma" –, que antecipa o fragmento
La 470: o homem "não fica satisfeito se não tiver a estima dos
homens". A qualificação repetida "tão grande" é igualmente
notável: "Temos uma ideia tão grande da alma do homem
(...)", "ele estima tão grande a razão do homem
(...)". Com efeito, La 470 descreve a estima que o homem tem pela razão do
homem. Entendamos: não a estima que tenho por minha própria razão, mas a que
tenho pela dos outros homens. Ou seja, a estima que tenho pela razão dos homens
enquanto podem ter-me em estima, ou ainda, a estima que tenho pela razão de outrem
enquanto pode ter-me em estima. O ponto de partida aqui é Montaigne (Ensaios,
I, XVI – "Da Glória"), ou Montaigne logo substituído por Descartes.
Encontramos até mesmo o par baixeza e excelência, mas desta vez não vale mais
por ele mesmo e tem como simples função dar início à análise da admiração e da
glória. Podemos agora ler o fragmento La 470:
A maior baixeza do homem
está na busca da glória, mas é nisso mesmo que está a maior marca de sua
excelência [a saber, a razão do homem]; pois qualquer que seja a posse que ele
tenha sobre a terra, qualquer que seja a saúde e a comodidade essencial que
tenha ["essencial" retoma os "efetivos" e
"substanciais" de Montaigne], não fica satisfeito se
não tiver a estima dos homens. Considera tão grande a razão do homem
[acentuamos novamente o redobro tipicamente pascaliano: o homem estima a
razão do homem onde possivelmente ele é tido em estima] que, qualquer que
seja a vantagem que tenha na terra, se não estiver também colocado
vantajosamente também na razão do homem, ele não fica contente. É o mais belo
lugar do mundo, nada pode desviá-lo desse desejo, e é a qualidade mais
indelével do coração do homem.
O
homem estima, pois, a razão do homem, porque aí ele pode ser estimado, e a
estima mais que o próprio real; esse lugar imaginário é o "mais belo lugar
do mundo". O mundo imaginário que é a razão de um outro homem
tem mais ser para o pensamento do homem do que seu ser real. Essa hierarquia é
marcada até na distinção entre a terra (o mundo real) e o conceito propriamente
pascaliano de mundo: qualquer vantagem que o homem tiver sobre a terra (ainda
que seja rei), seu mundo é imaginariamente constituído pela razão de
um outro homem. Para falar a linguagem dos escolásticos ou do Descartes da Meditatio III,
o ser objetivo, ou seja, o ser por representação na idéia, cessa de ser nada (nihil,
os escolásticos) ou de não ser inteiramente nada (non plane nihil, Descartes)
para ser o mais real, o mais ente. Pelo pensamento o homem se desapropria de
seu ser por querer ser na razão de outrem. A razão de outro homem é o lugar
onde quero ser, onde quer ser meu pensamento, onde ele quer se alienar. Meu
pensamento se aliena na razão de outrem. A razão do homem é o lugar da
alienação do pensamento do homem. Vemos, enfim, plenamente, o que significa
pensar; não pensar em si, mas o pensamento se posso dizê-lo, de si do
mundo: pensar significa imaginar-se. Com efeito, somente a
imaginação pode autorizar esse processo, propriamente derivado de uma projeção
imaginativa, que consiste em pensar no pensamento de outrem. Vemos então
a singularidade dessa suposta grandeza – que, se nós a lêssemos segundo o plano
da primeira antropologia, assinalaria antes uma miséria, uma forma de
dependência ou de decadência. Lembremo-nos de que a grandeza é aí determinada
como pensamento da miséria. Singularmente, a grandeza não é mais aqui a da
relação do pensamento consigo mesmo, pela qual a pequenez do corpo é, por assim
dizer, recuperada porque anulada pela multiplicação que lhe oferece o
pensamento que o considera e absorve. A grandeza é, aqui, a do próprio
pensamento – que deve recuperar a baixeza de nossa vida (início de La 806), que
quer a glória (La 470) – e que, por isso, se pensa – não a si mesmo –, mas a si
mesmo descentrado no pensamento de outrem. Termo a termo, as duas (supostas)
modalidades da grandeza se oporiam. No primeiro caso, a grandeza provém da
inclusão de sua própria miséria que o homem realiza pelo pensamento. Aqui, em
compensação, a grandeza do pensamento não se manifesta em um movimento de
englobamento, mas no fato de procurarmos ser um centro para outrem. Aquilo que
nos torna grandes na primeira antropologia não seria suficiente para fazer aqui
nossa grandeza, já que a da primeira antropologia deve ser confirmada por
outrem: ela se descentra, portanto.
O
fragmento La 806 explicita esse pensamento ou imaginação concebidos por Pascal
como alienação. Para fazê-lo, define a vida imaginária como interiorização de
uma identidade substitutiva. O imaginário é sempre o efeito de um jogo
intersubjetivo, ele é sempre pensado por Pascal na relação do interior com o
exterior. Como unir interior e exterior? O interior é vazio. A riqueza está no
exterior, fora – acentuamos de passagem a que ponto essa reflexão é paradoxal
no século XVII, que oferece sempre doutrinas da riqueza interior, da
interioridade como riqueza. Na falta de um bem verdadeiro, o homem deve
apropriar-se da exterioridade, ou seja, identificar-se com o exterior. A
imaginação toma emprestado do exterior algo que lhe permite organizar o vazio
interior do homem. Ela é, então, algo em mim que me habita, um poder que seria
como um sujeito dentro do sujeito. A imaginação é o análogo do eu no próprio
eu, um sujeito no sujeito, que organiza a presença, no próprio sujeito, de uma
exterioridade. Eis exatamente a função do imaginário: identificar-se a
exteriores diferentes e instáveis. O imaginário é o âmbito da instabilidade.
Compreendemos então que o divertimento será um caso particular desta estrutura
de identificação com a exterioridade, ou seja, dessa estrutura de alienação do
pensamento do homem. O fragmento La 806 descreve, com efeito, um tal processo
de relação com o exterior, no qual este se torna o lugar de um outro eu, onde
outrem se torna o lugar onde quero viver. Leiamos o La 806:
Não nos contentamos com
a vida que temos em nós e em nosso próprio ser. Queremos viver uma vida
imaginária na ideia dos outros, e para isso fazemos esforço para aparecer.
Trabalhamos constantemente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e
negligenciamos o verdadeiro. E se possuímos quer a tranquilidade, quer a
generosidade, quer a fidelidade, apressamo-nos em mostrá-lo a fim de ligar
essas virtudes ao nosso outro ser e as desligaríamos até de nós para juntá-las
ao outro; seríamos de bom grado poltrões para adquirir a reputação de ser
valentes. Grande marca do nada de nosso próprio ser não se satisfazer com um
sem o outro, e trocar com frequência um pelo outro. Pois infame seria quem não
morresse para conservar a honra.
Queremos
viver na idéia dos outros. O eu imaginário não está em mim, mas no outro. O que
me satisfaz é preencher o vazio do eu com as representações que o outro tem de
mim. La 806 dissocia o pensamento de si do trabalho do eu ("Trabalhamos
constantemente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos
o verdadeiro"), fazendo da representação que o outro tem de mim a
finalidade do trabalho do eu. Outrem é o mestre de minha identidade. Temos
então que tratar aqui de uma situação inversa e simétrica do bom amor de si (os
membros pensantes): amar-se de um amor justo, é amar-se como outrem – Deus – nos
ama, é interiorizar sua diferença. Aqui também Pascal
elabora a teoria de uma capacidade de ser fora de si, mas inversa: necessito do
outro, enquanto ele fantasia as imagens de meu eu. O eu é o
efeito desta imaginação. O imaginário é pura ficção
intersubjetiva, da qual o eu é um efeito.
Podemos concluir brevemente,
sublinhando, a partir da análise que precede, certos pontos pelos quais
caracterizávamos acima a segunda antropologia:
-
Na segunda antropologia, Pascal não exibe o homem sem Deus, mas o homem sem o
eu, no sentido exato de que meu eu pertence ao outro (amar-se é, então,
imaginar-se agradando ao outro); o que chamamos de alienação. Confirma-se,
nesse sentido preciso, que a segunda antropologia não é previamente teológica.
-
Uma mesma lógica governa o conjunto das análises da segunda antropologia sobre
a glória, a imaginação, a justiça ou o divertimento. Com o tema existencial da
glória, acabamos de verificar que uma das constantes – pois isso não é exposto
somente no fragmento sobre a imaginação – que a segunda antropologia revela é
que o homem se descobre habitado por um outro sujeito, a imaginação. Por aí
mesmo a segunda antropologia mostra ser um pensamento da alienação, um
pensamento do pensamento como alienação.
Fonte:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2006000200007&script=sci_arttext&tlng=en.%20A%20partir%20do%20artigo%20de: